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Novo ciclo global de inovação – Parte 3

Há um mundo emergindo do rearranjo geopolítico planetário, e esse mundo é pós-colonial. O que significa isso? E qual é o papel da inovação nesse novo contexto?

A inovação Pós-Colonial

Por Caio Vassão – consultor, professor, pesquisador e Visionário Residente na Kyvo.

Nesse terceiro ensaio sobre o “novo ciclo global de inovação”, Caio Vassão explora o conceito da “inovação pós-colonial”.

Para ler os ensaios anteriores da série, clique abaixo:
Novo Ciclo Global de Inovação – Parte 1
Novo Ciclo Global de Inovação – Parte 2

Capacete “Morrion”, utilizado pelos conquistadores espanhóis e portugueses durante os primeiros séculos da colonização das Américas. Cocar Kayapó (Mebêngôkre), aparato de alto valor simbólico para as populações ameríndias. A colonização das Américas foi um choque social, cultural, econômico, ambiental, político e territorial de uma escala tão enorme que ainda hoje nos debatemos para compreender o seu tamanho. (Imagens: Armas Medievales; National Museum of the American Indian/Smithsonian Institution — como muitos exemplos de destaque de arte plumária produzida por nativos brasileiros, esse cocar está no acervo de um museu estrangeiro.


A inovação pós-colonial

É muito difícil imaginar um futuro radicalmente diferente do nosso passado recente.

Parece que, em países como Brasil, estamos condenados a repetir o passado, ou a esperar que algo mude antes no contexto global para que, depois, possamos “copiar” essa mudança.

Não ajuda que a gente tenha como principal “referência de futuro” um conjunto de países que dominam nosso imaginário: os chamados “países desenvolvidos” dominaram o desenvolvimento global por tanto tempo que temos dificuldade de conceber outras imagens de futuro, outros caminhos, outras soluções.

Nosso referencial para o que é “desenvolvimento”, “bem-estar”, “qualidade de vida”, organização social, instituições robustas, uma sociedade organizada é um conjunto de países que, antes de serem “desenvolvidos”, foram “colonizadores”.

Para complicar as coisas, os órgãos internacionais que identificam, fiscalizam, avaliam e promovem as mudanças nas cidades, na infraestrutura, na gestão pública e privada, nos tipos de tecnologias e soluções que utilizamos — pensando, é claro, no incremento de qualidade de vida e na redução do impacto ambiental — também se baseiam na referência quase que única dos “países desenvolvidos”.

Na prática, as políticas públicas e as práticas da iniciativa privada têm no mundo eurocêntrico, no chamado “Norte Global”, o seu principal referencial, funcionando como mecanismo de propagação desse imaginário que vê a Europa, e a parte do mundo diretamente influenciada por ela — como os EUA , dentre outros— , como a “única referência” de como organizar a sociedade, propor inovações, imaginar o futuro.

Há um motivo profundo para essa “trava” do imaginário global: houve uma longa história de colonização que se iniciou no período clássico — na expansão do Império Romano, principalmente — que se estendeu para o mundo todo durante a Baixa Idade Média e as Grande Navegações, chegando até o mundo contemporâneo.

Fluxo de inovações e commodities e de inovações no mundo colonial. (Imagem: Caio Vassão/Bootstrap)

 

Nesse mundo profundamente influenciado pelo processo de colonização, cada país assume uma posição de “produtor de inovações” e de “consumidor de commodities (colonizador), que é o inverso do papel de “produtor de commodities” e consumidores de inovações” (colônia). Esse movimento é parte de um processo maior que ainda hoje cria obstáculos para o desenvolvimento sócio-econômico e cultural planetário.

Fluxo de inovações e commodities e de inovações no mundo pós-colonial. (Imagem: Caio Vassão/Bootstrap)

 

Para que possamos de fato criar uma sociedade global que consiga sobreviver às catástrofes ambientais que ela mesma cria, precisamos superar — enquanto espécie humana — esse legado colonial.

Para reconhecermos que somos parte do meio-ambiente e conseguirmos viver em um diálogo harmônico com a natureza, precisamos construir um novo imaginário que não seja dominado pelo que se acreditou ser “desenvolvimento” até agora.

O passado colonial ainda está vivíssimo no planeta, e é um obstáculo que impede que a gente conceba uma outra realidade, outros caminhos de desenvolvimento, outros tipos de vida cotidiana, outras inovações.

A ilusão do “trem do desenvolvimento”

Para deixar mais claro como a visão colonial de mundo é problemática, eu sempre conto a seguinte história:

Imagine que o mundo é um trem composto por vagões e locomotivas. Cada vagãorepresenta um país, e cada país está em uma posição no comboio do trem: quanto mais perto da locomotiva, mais desenvolvido; quanto mais perto do fim do trem, menos desenvolvido.

É como se todos os países tivessem que passar pelas mesmas estações — os mesmo estágios do desenvolvimento sócio-econômico. Em uma sequência linear de desenvolvimento, sempre igual para todos os países e sociedades.

Imagine as estações: primeiro, os países passam por uma fase agrícola; depois pela industrialização; por fim pela revolução digital.

É claro que há muito mais “estações”, ou estágios de desenvolvimento, do que esses. Mas, independentemente do grau de conhecimento que a gente tenha sobre a história do desenvolvimento dos países, quase todo mundo acredita nessa imagem linear do desenvolvimento: os países do mundo como vagões de um trem. Por exemplo, muita gente acha que um país não pode passar pela revolução digital sem ter passado pela industrialização — mas isso acontece hoje em muitos países do mundo!

Dependendo da linha sociológica ou desenvolvimentista que você se basear, as estações são diferentes, mais numerosas, o trajeto mais complexo. Mas essa ideia de desenvolvimento linear é como um “parasita da mente”: é como se não fosse possível imaginar o mundo de outro jeito.

Mas, sabemos que essa imagem linear é absurda: o mínimo de conhecimento a respeito da história mostra que cada país tem uma trajetória singular de desenvolvimento sócio-econômico, industrial e urbano que depende de sua história específica.

É claro que há muitos países que passaram por trajetórias parecidas. Mas isso é mais fruto de um planejamento integrado, em que um país tenta imitar a trajetória de outro, forçando esses países a terem uma história parecida, do que a manifestação de um “princípio unificado” que seria capaz de determinar o desenvolvimento histórico de todas as nações.

Por outro lado, é possível que países com histórias similares tenham partido de condições iniciais já bastante parecidas — como os países do oeste da Europadurante a Revolução Industrial.

Mesmo assim, cada país sempre tem um caminho que é só dele.

A singularidade de cada país é uma fonte de riqueza para todo mundo

A singularidade de cada país é uma fonte de riqueza para todo mundo que é posta em risco pela mania da homogeneização colonial das culturas.

Cada contexto sócio-econômico-antropológico é uma situação ímpar, diferente de outros contextos — inclusive dentro de um mesmo país: São Paulo é diferentedo Mato Grosso ou do Pará; até mesmo as diversas regiões e populações de São Paulo têm condições de vida diferentes que indicariam caminhos distintos de desenvolvimento.

Temos a mania de compreender o mundo de modo linear e simplista que nos convida, o tempo todo, homogeneizar o mundo, colocar todos os países e contextos sociológicos nesse “trem do desenvolvimento”.

Já podemos escutar alguém dizer: “uma sociedade digital não pode existir antes de termos saneamento básico para todos!”

Ou então: “para que uma sociedade tenha formas de transação financeira avançada, primeiro ela precisa ter uma longa história de instituições financeiras locais!”

Achamos estranho que países, como a Índia, tenham smartphones nas mãos de praticamente todos os cidadãos, enquanto até mesmo os bairros mais abastados não têm sistema de esgoto. Achamos que as duas coisas (smartphone abundante e esgoto raro) são características de etapa sucessivas de desenvolvimento, portanto não podem conviver em um mesmo contexto sócio-econômico.

Mas, esses aspectos da vida contemporânea — como telefonia móvel banalizada e acesso a saneamento básico — não são etapas interdependentes do desenvolvimento de um país.

Essas regras são inexistentes em um jogo social global. Países e sociedades trilham seus caminhos independentemente de nossas expectativas.

Colonialismo como obstáculo para um mundo regenerativo

Atualmente, o que está dificultando consideravelmente a aceleração do Novo Ciclo Global de Inovação é a crença de que todos os países do mundo, incluindo o Brasil e a América Latina, terão que passar pelas mesmas “estações” que os países outrora chamados de “desenvolvidos”.

A pior coisa desse modelo do “trem do desenvolvimento” é que não conseguimos imaginar outros estágios de desenvolvimento pelos quais os países “desenvolvidos” não passaram ainda, e talvez não venham a passar. E isso faz com que seja impossível imaginar estágios de desenvolvimento ainda mais avançados do que os alcançados pelos países do Norte Global.

Ficamos esperando que o futuro nos seja comunicado pela história recente dos países do Norte Global, e perdemos a chance de criar um futuro mais interessante e rico para todos.

Podemos cogitar um futuro mais avançado, mais sofisticado, original, interessante do que nos permitem imaginar nossos sonhos de “sermos desenvolvidos do mesmo jeito que o mundo eurocêntrico”.

Esse esforço de pensar “outros futuros” é a construção de um Imaginário Pós-Colonial.

Mas, o que é “colonização”? E por que ela impede inovações regenerativas?

“Colônia” era, em sua origem romana, uma fazenda: a apropriação do território natural para fins humanos. “Colono” é o fazendeiro, ou trabalhador rural que “faz a colônia”.

Os antigos países do oriente próximo — Pérsia, Grécia, etc. — e da Europa Clássica — Roma, em especial — “colonizavam” seu entorno, criando assim seu território nacional. Os oficiais da Legião Romana eram, comumente, remunerados com territórios a serem “colonizados”, subjugando populações locais ao controle centralizado de Roma.

Essa mesma lógica de colonização foi retomada na Baixa Idade Média, com as Cruzadas, disfarçando expansionismo territorial de “guerra santa”.

O processo de colonização se ressignifica e desenvolve com as Grandes Navegações: o colonialismo europeu toma o mundo de assalto durante os séculos XVI e XVII, criando as colônias modernas — junto com elas um novo tipo de escravidão, subjugando povos por distinção racial e cultural, criando as bases históricas do racismo contemporâneo.

Nesse recente período colonial, a metrópole (no nosso caso, Portugal) dizia o que tínhamos que fazer, e nós (colonos brasileiros) obedecíamos.

Se estabeleceu uma hierarquia global que continua funcionando até hoje: os países colonizadores exigiam que os colonizados produzissem riquezas para exportação (commodities), e mantinham esses países-colônia em um estágio sempre limitado de crescimento e desenvolvimento. Sempre aguardando “novas diretrizes” e as inovações que iríamos adotar.

As colônias de outrora se tornaram países independentes, e hoje vivemos em uma democracia global em que cada país pode decidir o seu destino com autonomia. Mas, os países acabam enredados em relações internacionais que não são favoráveis para o seu desenvolvimento local.

Em especial, o problema dessa herança colonial é que olhamos para nós mesmos como uma versão piorada ou cronicamente menos desenvolvida dos países colonizadores, quando poderíamos construir um rumo mais interessante para nós, partindo de nossa realidade, nossa história, nossas referências locais.

Claro, sempre podemos aprender coisas relevantes dos países que foram colonizadores. Mas não precisamos nos limitar à visão de mundo que vem embutida nas inovações que importamos de lá.

É importante colocar em nosso “caldeirão de referências” tanto coisas do mundo eurocêntrico, como também da realidade singular que construímos por conta própria.

Mas, isso ainda é muito raro.

“É proibido inovar!”

Inúmeras vezes, quando apresentei inovações “avançadas demais” (ou seja, inéditas não só no Brasil, mas no mundo todo), escutei de potenciais investidores algo similar ao seguinte: “Ideia incrível! No entanto, mesmo que sejamos os pioneiros globais dessa inovação, não quero correr risco algum. Vou esperar isso surgir nos países ‘desenvolvidos’ e depois importamos para o Brasil!”

Ou seja, ainda é muito comum assumirmos a postura colonizada de ficar esperando que inovações sejam prototipadas nos países “desenvolvidos” para, só depois disso, sabermos qual é o próximo passo de desenvolvimento que devemos seguir.

Ainda hoje, é muito difícil que um brasileiro assuma alguma posição de protagonismo global: acreditando que isso é impossível, nós sequer tentamos.

Ficamos aguardando que ideias surjam, sejam desenvolvidas e implementadas nos países do Norte Global, e depois corremos para “trazer para o Brasil” aquela nova “maravilha”, aquele “pedacinho do futuro”.

E, quando essas inovações demoram a aparecer por aqui, repetimos a trágica frase:

“isso ainda não chegou no Brasil”.

E ficamos aguardando o dia em que chegará.

Enquanto isso, incontáveis oportunidades de originalidade batem à nossa porta, e são enxotadas como um visitante indesejado: novos conceitos que poderiam ser transformados em inovações disruptivas emergem nos países coloniais e periféricos o tempo todo, mas as lideranças locais comumente têm dificuldade em reconhecer o valor dessa criatividade.

Por exemplo: Metrópoles fluviais na Bacia Amazônica? Por que não?

Mas, é comum que tanto a população fragilizada, como a classe média de Belém deixem os transportes fluviais de lado. Afinal de contas, onde já se viu uma metrópole movida a barco?

Cidades verdes, cheias de agroflorestas, espaços abertos de convivência, com parques lineares substituindo avenidas esfumaçadas?

Por que não? No entanto, quando essas imagens urbanas são cogitadas, poucos são os urbanistas e gestores públicos que abraçam a ideia e aceitam construir uma cidade de um tipo completamente novo. Fora a dificuldade em disseminar o conceito e angariar apoio popular para essa transformação.

Afinal de contas, em países “desenvolvidos” (quase todos de clima temperado ou frio), uma cidade verde seria um desafio enorme, praticamente impossível. Assim, escutamos por aqui: “onde já se viu? uma cidade verde? ideia fantasiosa…”

E, assim, duvidando dos nossos insights, repetimos a profecia auto-realizadora do subdesenvolvimento crônico.

Afinal de contas, o papel de um país em desenvolvimento é inspirar-se nos países desenvolvidos, e copiar deles seu trajeto de desenvolvimento. Não é?

O modo de pensar da colonização é similar ao da indústria.

É interessante notar que essa mesma noção hierárquica está presente na forma de pensar da indústria: assim como o colonizador impõe seu ponto de vista sobre o colonizado, muitas vezes de modo violento, o especialista/gestor de pensamento industrial acredita que sabe o que é o melhor, e acredita que funcionário deve obedecê-lo, sem questionamento.

Na indústria, o papel do funcionário é seguir ordens, e não pensar criativamente. Criatividade é atividade de “outras pessoas”, sabe-se lá onde.

Esse mesmo modo hierárquico aparece, de inúmeros modos diferentes, no governo, na iniciativa privada, nas escolas, até mesmo nos laboratórios de inovaçãoFicamos esperando uma “ordem” para que saibamos o que fazer.

Um jeito de entender a indústria é como a continuação do processo colonial, iniciado há séculos: povos conquistando e subjugando outros povos; depois, a humanidade conquistando e subjugando a natureza por meio da indústria, obrigando-a fazer nossa vontade.

Colonizador e colonizado, um ciclo vicioso

Mas, de onde vêm os colonizadores? De onde surge o ímpeto da colonização? E como esse ímpeto se propaga constantemente para o futuro?

Há como um ciclo vicioso, em que o colonizador subjuga o colonizado. E, esse, vivendo de acordo com a dinâmica social imposta pelo colonizador, torna-se ele próprio um colonizador. Essa segunda pessoa (ou povo) passa a compreender o mundo segundo essa lógica da submissão de povos a padrões impostos, e passa a reproduzir essa lógica em oportunidades de encontro com outras culturas, povos e civilizações.

Todo colonizador foi, um dia, um colonizado: os europeus que colonizaram a América foram, eles próprios, colonizados pelo Império Romano há muitos séculos. Hoje, no Brasil, quando escutamos uma canção popular que representa bem a cultura do Sudeste do Brasil em uma festa de uma cidade do Centro-Oeste do país, sabemos que a colonização continua hoje de acordo com outros meios (colonização “interna”).

A origem do processo de colonização é antigo, provavelmente perdido na história. Mas ele se reproduz de modo muito eficaz: povos que foram colonizados adotam as práticas dos povos colonizadores, e passam a colonizar outros povos. Hoje, essa dinâmica é mais sofisticada, e podemos falar de “colonização cultural”, em que hábitos, gostos, padrões culturais são impostos com pouca ou nenhuma violência física, mas soterram as expressões culturais dos povos. Assim, surge uma hierarquia global de povos mais próximos ou mais distantes da centralidade global (hoje, a Europa). (Imagens: Caio Vassão/Bootstrap.)

 

Portanto, há uma hierarquia global que, mesmo não visualizada como no diagrama simplificado acima, indica países que estão “acima” de outros. Trata-se de um sistema hierárquico global que hoje começa a mudar. Mas nosso imaginário ainda não está adaptado para reconhecer essa nova realidade.

Como quebrar esse ciclo vicioso de colonizados que se tornam colonizadores? Como promover uma rede distribuída global de países em uma relação mais complexa de interdependência?

Um modo de quebrar o ciclo vicioso da colonização é trabalhar por meio de redes distribuídas: as redes que não têm centro definido. Em uma rede que conecte instituições, comunidades, pessoas, empresas, governos, corporações, etc., pode-se identificar oportunidades de ação além daquele caminho linear de comando e controle. Neste caso, podemos também imaginar os países do mundo não mais naquele “trem do desenvolvimento”, e sim cada um como um ponto em uma rede internacional mutuamente benéfica. Essas duas redes distribuídas (no nível das pessoas/instituições e no nível internacional) se sobrepõem no atual contexto geopolítico transnacional. (Imagens: Caio Vassão/Bootstrap.)

 

Superando o período colonial: metadesign

Superar o pensamento colonial é superar essas cadeias de comando e controle, e compreender que um futuro sem colônias também é, necessariamente, um futuro colaborativo e cocriativo, em que as pessoas participam da construção das suas próprias condições de vida.

Sabemos, hoje, que o modo mais avançado e bem-sucedido de criar e desenvolver inovação é por meio da participação direta dos usuários, do público, das comunidades, cidadãos e das pessoas.

Sabemos que impor ideias novas, sem contar com a contribuição do próprio público que irá adotar e utilizar aquela inovação — por mais sedutora que essa atitude impositiva seja para assegurar as posições em uma hierarquia local ou global, e entre humanidade e natureza — é o caminho certo para a irrelevância.

Sabemos que o processo cocriativo é fundamental para criar-se valor no mundo contemporâneo. E isso, por incrível que pareça, é incompatível com nossa herança colonial!

Para desenhar esse processo, as práticas do metadesign são cruciais.

Dentre outras coisas, o metadesign é uma abordagem para que comunidades possam construir o contexto do seu próprio trabalho criativo. Por meio dessa construção das nossas próprias condições de cocriação, podemos propor inovações — mesmo quando as condições iniciais não são favoráveis, sob o peso de séculosda herança colonial.

Para irmos além da adoção passiva e da crítica de inovações globais, precisamos construir nosso modo de fazer as coisas, de dentro para fora, das comunidades de práticas, dos arranjos produtivos locais, das práticas das culturas originárias. Mas também escutando os ecos do globo, sempre sabendo reinterpretar esses ecos de um modo original.

As práticas pós-coloniais são aquelas da assimilação crítica e criativa do outro, o que permite a invenção de outros futuros além daqueles imaginados pelo mundo eurocêntrico.

Outros futuros, outros sonhos

Mesmo assim, ainda hoje ficamos deslumbrados com as propostas inovadoras que vêm dos países “desenvolvidos”, e somos pouco disponíveis a assumir protagonismo em uma visão original de mundo e futuro.

Colonizar Marte? Quando podemos estar em simbiose com a Terra?

Um modo rigoroso de compreender o sonho da conquista do espaço é a continuação da colonização para além do nosso planeta.

Planeta Marte e a Terra. Escutamos insistentemente que o próximo passo de nossa “evolução” é a colonização de Marte. A palavra “colonização” não é usada por acaso: é a continuidade de um processo histórico de longa duração, que a humanidade vem fazendo em camadas sucessivas, há séculos. Chegamos no momento de questionar esse processo e procurar alternativas. (Imagens: Sonda Rosetta/ESA; Tripulação da Apollo 17/NASA.)


Notaram que, convenientemente, a destruição do ecossistema da Terra parece ser o maior estímulo para essa empreitada? Ou seja, o pensamento colonial/industrial cria as condições de falência do ecossistema planetário. Em seguida, esse mesmo modo de pensar propõe a colonização de outro planeta?

Qual é o destino ao qual nos leva essa herança?

Que tal, antes de cogitar migrar em massa para outro planeta, aprendermos o bem-viver com as outras múltiplas culturas que habitam nosso planeta natal?

Há um enorme repertório de práticas, conceitos, cosmologias, sócio-antropologias disponíveis nas culturas que, hoje, estão ainda submissas na lógica colonial: de Pachamama a Gaia, da Antropofagia Cultural ao desvio conceitual das artes, das Agroflorestas Pré-colombianas às práticas da alimentação saudável, das técnicas de fabricação em geometrias complexas com fibras naturais (tramas, tecidos, estruturas) à arranjos produtivos locais alternativos.

Há um “outro” repertório de cultura material em emergência no mundo contemporâneo, baseado em uma sapiência ancestral das tramas estruturais. O mecanismo do “Tipiti”, dispositivo amazônico de extração do tucupi, é uma sofisticada engenhoca de compressão da pasta de mandioca; o trabalho de Kenneth Snelson, sobre estruturas tênseis, é baseado na trama de cestas, transpostas para três dimensões; a obra do artista alemão Nils-Udo é baseada em padrões de entrelaçamento, sempre em trabalhos efêmeros. (Imagens: Rachel Bonino/Sacola Brasileira; Kenneth Snelson/Tensegrity and Weaving; Nils Udo/Water Nest — RealWorld Records.)

 

Há um Outro Mundo das culturas sofisticadas e complexas, mas ignoradas pela cultura eurocêntrica. Esse outro mundo aguarda ser acolhido, desenvolvido e explorado criativamente.

O novo ciclo global de inovação é um empreendimento pós-colonial porque ele será inspirado também por uma biblioteca de saberes e fazeres mais sábia do que o entusiasmo adolescente das novas tecnologias da computação e da telecomunicação.

Isso não significa que devemos abandonar a alta tecnologia em favor da baixa tecnologia. Muito pelo contrário.

Quando Oswald de Andrade propôs a Antropofagia como uma abordagem de construção crítica de cultura pós-colonial, sua expectativa era que o brasileiro conseguisse imaginar seu futuro além do papel subserviente que os colonizadores tinham nos reservado, e nós ainda continuamos a reproduzir hoje.

Não seria chegada a hora de fazer uma revolução pela criatividade?

A inovação pós-colonial que poderia ser

Mas, o que seria uma inovação pós-colonial?

Como imaginar um futuro a partir de um repertório expandido, que não negue, necessariamente, a herança da colonização eurocêntrica, mas consiga se inspirar em outros repertórios, sistemas e culturas — talvez elas próprias originárias de culturas que foram colonizadas?

O sol e o vento de Natal — Rio Grande do Norte

Há muito anos, fui convidado para palestrar em um evento na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Chegando lá, notei uma situação estranha: sob o sol escaldante e o vento incessante, pessoas andavam sofrendo e correndo, migrando de um lugar sombreado para outro. Não havia nenhuma forma de “sombra pública” na cidade, ou locais protegidos do vento.

Os habitantes de Natal viam aquilo com muita naturalidade, e os professores universitários “importados” da Região Sudeste apenas lamentavam a situação desconfortável.

No final do evento, sobre design e inovação, me perguntaram qual poderia ser um ponto de atenção para inovações especificas para Natal e o estado de Rio Grande do Norte.

Respondi que a “gestão do sol e do vento” poderia não apenas incrementar o bem-estar da população como também ser fonte de energia e renda para a cidade. Acharam interessante, mas a contradição entre a urbanização de caráter europeu e o clima semi-desértico local não parecia tão gritante para eles.

Nos países europeus e temperados, é comum falar da importância de se tomar sol. Há a clássica canção “On the sunny side of the street”, em que o cantor elogia um momento de felicidade enquanto caminha sob sol. Em clima temperado, faz todo sentido procurar a luz do sol: você pode morrer congelado ou pegar uma pneumonia.

Em um clima tropical-equatorial, o sol é tanto fonte de vida, como de morte e destruição: saber direcionar, orientar, desenhar nossa relação com o sol é crucial para termos cidades confortáveis e acolhedoras.

Era estranho ver as ruas de Natal desertas das 10 horas da manhã até as 16 horas da tarde: sem equipamentos urbanos adequados, ninguém aguenta ficar no sol e no vento.

Como não consideramos outras formas de criar bem-estar na vida urbana além da herança europeia, não dedicamos criatividade para inventar uma cidade que dialogue bem com o sol e o vento abundante de algumas regiões brasileiras.

Há todo um repertório de vida urbana em climas desérticos. Mas esse repertório não é europeu. Ele vem do mundo árabe, indiano e africano.

Estamos procurando inspiração no lugar certo?

Enquanto continua-se a construir Natal como uma cidade temperada em clima equatorial-desértico, cogita-se verticalizar a orla marítima da cidade. Se a referência é tradicional e eurocêntrica, a mentalidade brasileira a aceita e permite que seu ambiente seja devastado: a verticalização irá impedir insolação por boa parte do dia, o que é péssimo. A gestão competente e benéfica do sol poderia ser inspirada na arquitetura árabe, como nesse pátio em Marrakesh. (Imagens: Jornal Agora RN; R Messier.)

Urbanismo tropical

Por incrível que pareça, as tradicionais construções de alvenaria que são predominantes no Brasil não são compatíveis com nosso bioma e clima.

Especialmente, na vasta maioria do território brasileiro, marcado por grande umidade, insolação e pujança do bioma, nossas casas de alvenaria, concreto e tijolos oferecem uma péssima interface com o meio-ambiente: não dialogam bem com nosso regime de temperatura e insolação, e temos dificuldades com nossos solos úmidos e chuvas torrenciais.

Tudo isso é visto como “natural” pelo brasileiro: casas mofadas, molhadas na chuva e secas na estiagem, apartamentos quentes no verão e frios no inverno.

O que deveria ser uma interface inteligente com o ambiente — compensando de modo eficiente as variações climáticas naturais — , é pouco mais que um refúgio desconfortável, um depósito ruim para nossas quinquilharias. Mas, como não conhecemos outra opção, não consideramos outras ideias para nosso ambiente construído.

A mesma coisa acontece com a ocupação do território. Para dar apenas um exemplo: os rios tropicais das cidades brasileiras são mais caudalosos e rebeldes que os rios das cidades em clima temperado; no entanto, foram canalizados e aprisionados em calhas estreitas!

À esquerda, os meandros do Rio Tietê em sua “várzea de inundação” sendo retificados na década de 1930. À direita, o plano do urbanista Saturnino de Brito para o Rio Tietê, ignorado pela gestão pública — acima, o traçado cheio de meandros do rio; abaixo, o plano de um “Parque Fluvial”, que acolheria as inevitáveis inundações sazonais. Tentando nos alinhar com um “urbanismo funcionalista” eurocêntrico, adequado ao clima temperado (e não tropical), ganhamos as infames Vias Marginais, que inundam todo ano. (Imagens: São Paulo: a cidade, os rios e suas planícies inundáveis — o rio Tietê; Saturnino de Brito/Projeto de Melhoramentos entre Osasco e Penha — 1924.)

Na cidade de São Paulo, esse método anti-ecológico de lidar com o patrimônio fluvial funcionou de modo tolerável por um tempo. Mas, a partir da década de 1980, a característica de várzea dos Rios Pinheiros e Tietê se impôs sobre o descaso ambiental, e passamos a ter enchentes crônicas.

Trata-se de um problema aparentemente insolúvel, já que investimos literalmente bilhões de reais nesse desenvolvimento urbano equivocado da orla fluvial, que hoje tem alta densidade populacional. Como reverter esse equívoco? Como corrigir esse desastre? O que fazer com esse patrimônio?

Antes desse desastre, um engenheiro brasileiro, Saturnino de Brito propôs nas primeiras décadas do século XX um parque fluvial que permitira que os rios de São Paulo se alargassem em suas várzeas. Teríamos o maior parque urbano do mundo.

Mas a visão eurocêntrica prevaleceu. E temos o desastre ecológico das infames “Vias Marginais de São Paulo”.

As palafitas de Afuá e o urbanismo amazônico

Quando ponderamos sobre o futuro da urbanização da região amazônica, somos afligidos por uma sensação de pânico: boa parte da população amazônica tem em alta conta as construções de alvenaria que são comuns no sudeste, inspiradas na cultura urbana europeia e dos países de clima temperado ou frio.

Conversando com os belenenses de classe média alta que passam seus fins-de-semana na Ilha do Combú, ao lado da cidade de Belém, fico sabendo que um um sonho comum é ter uma casa na orla da Ilha.

No entanto, afirmam o repertório “sudestino” de realização pessoal: uma casa de fim-de-semana equipada para receber visitas, sempre de alvenaria e piscina ladrilhada.

Boaventura, morador e ativista da Ilha do Combu, no restaurante que administra na ilha. A maior parte das estruturas da ilha, são palafitas perfeitamente adequadas ao ambiente semi-aquático do Combu. Como garantir, ou pelo menos convidar, que a urbanização da ilha do Combu seja realizada de uma maneira não apenas sustentável, e sim regenerativa? (Imagem: Edielson Shinohara e Danyllo Bermeguy/ Na Cuia.)

 

Mas, passeando pelos igarapés do Combú, vemos palafitas por todo lado: essa estrutura leve de madeira é amplamente utilizada na Bacia Amazônica; suspensa sobre as águas, permite uma interface sofisticada entre a terra-firme e os rios.

Numerosas gerações de uma sociedade miscigenada entre colonizadores e colonizados criou e desenvolveu uma arquitetura vernacular que permite viver no limiar entre dois mundos: a terra e a água.

A cidadela flutuante de Manaus, que existiu até a década de 1960, esquecida na evolução urbana eurocêntrica que aflige a cidade há décadas. (Imagem: Dr. Otoni M. de Mesquita.)

Afinal de contas, o regime de cheias e vazantes dos rios amazônicos tem tanta amplitude que uma casa assentada no que parece ser solo firme pode ser inundada no período das chuvas.

Por que os belenenses de classe média alta não sonham em ter uma casa de palafita, igualmente equipada para suas recepções sociais, mas adotando um repertório construtivo adequado para as condições bioclimáticas locais? Que imaginário habita esses sonhos?

Em muitos outros lugares do Brasil, vemos uma situação muito parecida: o desprezo pelo repertório local e a adoção sem críticas de um repertório europeu, surgido em condições bioclimáticas completamente diferente das nossas. Para muitos brasileiros, as palafitas são sinônimo de pobreza, sinal de uma economia e sociedade atrasadas, em relação ao “mundo desenvolvido”.

Por outro lado, temos o exemplo da cidade de Afuá. Localizado na Ilha de Marajó, do lado oposto da região em que fica Belém do Pará, o município de Afuá é chamado de “Veneza do Marajó”, por ser uma cidade de palafitas, igarapés e transporte fluvial.

A cidade de Afuá, na ilha de Marajó. Uma cidade sobre palafitas, em que o modo mais comum de deslocamento (além dos pés) é a bicicleta. (Imagens: Iphan/Uma arquitetura Marajoara; Mauricio de Paiva/National Geographic.)


Como a maior parte da cidade está construída sobre estruturas leves — integrando habitação, paisagem e as vias públicas — a mobilidade urbana se dá em cima de passarelas suspensas, nas quais pode-se apenas andar a pé ou de bicicleta.

Os moradores de Afuá relatam que têm uma sensação de segurança maior do que os moradores de outras cidades, e sentem que a cidade de fato é parte integral de suas vidas — bem diferente da sensação de alienação urbana comum em outras cidades brasileiras.

Lá, percebe-se a relação entre mobilidade ativa e maior qualidade de vida da população: sem o barulho de carros e ônibus, o ambiente é silencioso, bastante diferente do que se vê em outras cidades da Bacia Amazônica.

Vemos em Afuá o que acontece quando uma cultura abraça sua herança e a transforma para que faça sentido em um novo momento histórico: novas soluções para habitação, comércio, hospedagem, sistemas de mobilidade.

Há outro senso de urbanidade: uma cidade silenciosa, cheia de aromas da floresta e das cozinhas, povoada pelos sons da conversa nas ruas/passarelas, habitada por uma arquitetura que tem relação tanto com as palafitas tradicionais da região, como com um vilarejo de pescadores no Japão.

Como será o futuro de Afuá?

Caso ela continue a explorar sua forma peculiar de urbanidade, podemos imaginar a adoção de veículos leves similares ao Pocket Car, ou quem sabe os teleféricos para pessoas e para carga, como já foram instalados no Rio de Janeiroe outras cidades da América Latina.

Caiaque oceânico. Alguns belenenses, como Hilton Menezes, comentam que o caiaque oceânico pode ser uma “bicicleta da Amazônia”, um jeito das pessoas se apropriarem da vastíssima rede fluvial que há ali, com a mesma comodidade da bicicleta em regiões planas do mundo. (Imagem: Nepal Equipamento de Aventura.)


Há anos, urbanistas falam de um urbanismo de infraestrutura leve: se construímos a cidade tendo a escala do corpo humano como referência, o impacto sobre o meio-ambiente é muito menor, e a relação entre as pessoas e com o ambiente é mais desimpedida, leve e saudável.

Quando os urbanistas se baseiam em uma urbanidade industrial — nascida nas cidades-fábrica européias do século XIX, e tendo o maquinário industrial como principal referência — os meios de transporte que parecem mais “realistas” ou “adequados” são aqueles dos grandes deslocamentos, entre bairros dormitórios e bairros de trabalho.

Por outro lado, em uma nova fase do urbanismo, a cidade é “compacta” e deve ser organizada tendo as pequenas distâncias como referência: a cidade caminhável é também aquela das infra-estruturas leves, que precisam ser prototipadas de acordo com a situação concreta de cada cidade.

Do “bici-táxi” ao bondinho do Alemão, passando pelo caiaque oceânico (carinhosamente apelidado de “bicicleta da Amazônia”) e teleféricos de carga.

Mas, mesmo com toda a pressão pela redução da pegada ecológica do meio urbano, ainda pensamos a cidade segundo o ecossistema europeu de transportes.

Uma outra “indústria 4.0”

Há quase duas décadas, fala-se de fábricas automatizadas em cada esquina, em um contexto social em que a população estaria envolvida de modo ativo na invenção da parafernália que está com ela em seu cotidiano: no lugar de grandes indústrias inventando coisas de relevância duvidosa, o as pessoas inventando produtos que são de alta relevância para seu modo de vida.

Esses equipamentos produtivos locais sustentariam uma equipe de design e uma gestão micro-industrial que trabalharia a partir de demandas e oportunidades reais de cada comunidade.

As mesmas inovações tecnológicas que inspiraram pessoas a imaginar essas “micro-fábricas de bairro” foram interpretadas pela mentalidade eurocêntrica, industrialista e ainda alinhada com a visão de mundo colonial como a famosa “indústria 4.0“. Além de ser a integração de uma vasta rede de sistemas produtivos de escala global, uma das promessas da indústria 4.0 é levar automação até mesmo para o processo criativo.

Por outro lado, se adotarmos uma visão pós-colonial, simbiótica com a natureza e que valoriza as relações sócio-ambientais regenerativas, podemos imaginar uma “outra Indústria 4.0”, em que se utiliza um repertório muito antigo e, ao mesmo tempo, moderno das estruturas trançadas e malhas estruturais . A cestaria tem muito em comum com a ciência dos materiais contemporânea: meta-materiais são materiais que têm uma resistência extraordinária porque são malhas estruturais que, sob um certo ponto de vista, funcionam como cestas.

 

Há um “outro” repertório de cultura material em emergência no mundo contemporâneo, baseado em uma sapiência ancestral das tramas estruturais. O mecanismo do “Tipiti”, dispositivo amazônico de extração do tucupi, é uma sofisticada engenhoca de compressão da pasta de mandioca; o trabalho de Kenneth Snelson, sobre estruturas tênseis, é baseado na trama de cestas, transpostas para três dimensões; a obra do artista alemão Nils-Udo é baseada em padrões de entrelaçamento, sempre em tranalhos efêmeros. (Imagens: Rachel Bonino/Sacola Brasileira; Kenneth Snelson/Tensegrity and Weaving; Nils Udo/Water Nest — RealWorld Records.)

Além disso, como mencionei no ensaio anterior dessa série, um mundo pós-industrial não é um mundo anti-industrial, e sim uma nova realidade em que a indústria não mais dita o modo como a sociedade deve operar, e sim o contrário: precisamos ser guiados pelas demandas reais de cada comunidade, no lugar de tentar encontrar a “resposta padrão” que será repetida milhões ou bilhões de vezes ao redor do planeta.

Essa “outra” indústria 4.0 pode ser um meio para que esses dois mundos — o Norte e o Sul Globais — colidam e entrem em fricção criativa: o fértil diálogo entre a mais moderna tecnologia industrial e o mais profundo conhecimento ancestral, a exploração das relações complexas entre sociedade e natureza, a sobreposição entre cultura global e as infinitas variedades de culturas locais, estimulando e acolhendo a diversidade de demandas sociais e ambientais de cada comunidade, região e bioma local.

Uma sociedade aérea — leve e regenerativa

Uma sociedade flutuante? Ilustração pueril da virada do século (1901). Uma transposição jocosa e absurda de cada veículo que estava nas ruas para os céus. Uma “sociedade aérea” certamente não seria isso, e sim uma reinvenção completa da nossa relação com o território. (Imagem: Mary Evans Picture Library.)

 

Santos-Dumont, antes de co-inventar o avião, imaginava um futuro em que as pessoas voariam com a mesma frequência e facilidade com que andam pelas ruas.


Pioneiro dos dirigíveis, o inventor e inovador brasileiro considerava que esses veículos deveriam ser baratos e acessíveis, utilizados com a mesma simplicidade com que usamos bicicletas.

Buckminster Fuller observando uma de suas cúpulas geodésicas sendo içada por um helicóptero. Você consegue imaginar uma casa tão leve que possa ser levada pelos ares? (Imagem: Buckminster Fuller Archives.)


Buckminster Fuller imaginava edifícios que eram tão leves e eficientes que poderiam ser transportados, inteiros, por veículos aéreos, como dirigíveis e helicópteros.

O desafio de uma “sociedade mais leve que o ar” é ampla e complexa, de caráter tecnológico, social, político e cultural. Mas ela poderia nos colocar, enquanto espécie, em outra patamar de relacionamento com o ecossistema planetário: não mais presos ao transporte de solo, poderíamos nos deslocar seguindo as correntes atmosféricas e ventos predominantes, selecionando a altitude de acordo com a direção que desejamos ir, “pegando carona” no vento. Uma outra geopolítica surgiria, pautada não mais pelo deslocamento pelos fundos de vales, pelas planícies, e pelos caminhos que dão acesso aos territórios. A própria ideia de “território” seria alterada: não mais “onde conseguimos chegar”, a pé e seus desdobramentos (cavalos, carroças, automóveis, trens, estradas e caminhos), e sim regiões inacessíveis a pé, picos de montanhas, encostas afastadas, regiões que só podem ser visitadas por meio de “bóias aéreas” (balões, dirigíveis, e suas variantes). Vivemos imersos em um “oceano aéreo”, um fluído intensamente capaz de sustentar volumes e massas enormes: veículos mais leves que o ar são, possivelmente, a única forma sustentável de transporte aéreo. A “era a jato” é uma anomalia, um período histórico de curta duração. A “era do dirigível” poderia ser um período longuíssimo de nossa história. Quem sabe não será?

A “era dourada dos dirigíveis”. Até meados da década de 1930, os veículos mais leves do que o ar eram a grande promessa de um futuro de uma sociedade global. Claramente, a humanidade estava construindo uma outra relação com o planeta. (Imagem: USS Akron sobre Nova York, Marinha Americana.)

 

Toda a história da humanidade foi marcada por nossa relação de submissão a padrões de acessibilidade terrestre, e depois construindo nossas cidades à beira de rios e oceanos, para tirar proveito do deslocamento aquático, de menor fricção e, por isso, maior mobilidade.

Se o conceito de uma “sociedade mais leve que o ar” parece absurda, improvável e irrelevante, frente a desafios imediatos de sobrevivência e bem-estar da população desvalida, é bom lembrar que transportar pessoas e coisas em veículos mais leves que o ar reduziria drasticamente a pegada ecológica de nosso deslocamento.

Além disso, não é a preocupação com o bem-estar social que impede que muitos levem a sério a exploração espacial, inclusive como opção de sobrevivência da espécie.

Mas, é importante frisar que o esforço para construir a parafernália que sustentaria uma sociedade mais leve que o ar é infinitamente menor do que aquele que será necessário para promover a emigração da humanidade para outros planetas. Isso não impede que, atualmente, a segunda hipótese seja levada a sério por muita gente, enquanto a primeira parece ter sido completamente esquecida sob o atropelo das buzzwords do último século.

Certamente, não há nenhum bilionário empreendendo uma corrida para construir dirigíveis baratos e acessíveis e, com isso, alimentando o imaginário de milhões de pessoas

Fico me perguntando quando nos tornaremos uma espécie responsável, e saberemos que, para que possamos adentrar uma nova etapa de nosso desenvolvimento, precisamos dar um destino ecologicamente correto para os rastros que deixamos, ou não, para trás.

Ou seja, ainda sequer resolvemos o problema de transporte de massa pela atmosfera do planeta: o transporte aéreo por meio de aviões a jato é uma fonte enorme de poluentes e carbono na atmosfera, e o transporte de cargas exige um dispêndio energético simplesmente absurdo: quanto mais no interior de um continente é o destino de pessoas e cargas, mais difícil é o seu transporte.

Enquanto muita gente delira com um futuro orientado pela exploração espacial, eu me entusiasmo em imaginar um futuro em que podemos nos locomover com graça e simplicidade pela atmosfera, reduzindo drasticamente o impacto ecológico das nossas andanças cada vez mais frequentes ao redor do planeta.

Comparação da eficiência energética dos meios de transporte. No Brasil, temos uma situação crônica causada pela adoção acrítica (e colonizada) dos meios de transportes rodoviários: deixamos de investir em ferrovias, e com isso temos uns dos sistemas de transportes mais ineficientes do mundo. Poderíamos corrigir isso com vastos investimentos em ferrovias. Ou… poderíamos fazer um “pulo do sapo”, e criar um sistema de transportes mais leves que o ar. (Imagem: European Environment Agency.)

 

Consideramos “terraformarMarte, ou minerar asteróides, e sequer resolvemos a questão dos transportes em nosso próprio planeta?
Aí está um exemplo de um imaginário que aceita delírios porque são oriundos das culturas colonizadoras, e nega projetos ambiciosos, porém viáveis, porque são oriundos do imaginário que tem origem em um pensamento verdadeiramente original e profundo.

Não há nada que impeça uma sociedade aérea. Criá-la seria um “pulo do sapo” que inventaria um novo tipo de sociedade planetária. Só precisamos ter imaginação e coragem.

E uma bela pitada de capacidade organizacional…

Mas isso tudo faz sentido?

Caso essas inovações se realizem, as transformações seriam profundas e pareceriam muito estranhas aos nossos olhos colonizados, despreocupados com a ecologia, acostumados com a ideia de que inovação é o lançamento do novo produto de apelo comercial imediato.

Outro aspecto crucial dessas inovações é que provavelmente seriam todas caraterizadas pela inovação organizacional, e não apenas pela sedutora inovação tecnológica: é a inovação organizacional que permitirá promover as transformações culturais e de governança necessárias para sustentar as ainda maiores transformações da paisagem social, urbana, de consumo e infraestrutura que serão necessárias para nossa sobrevivência.

Por outro lado, se esses exemplos de inovação parecem pouco “sexy”, um tanto descolados do que, hoje, se considera ser “inovação” — ideias muito vinculadas à infraestrutura urbana, pouco aos serviços e produtos de consumo — , é importante lembrar que o novo ciclo global de inovação terá que transformar a base material de nossa sobrevivência enquanto espécie: as cidades e a infraestrutura de produção.

Por fim, se esses exemplos parecem “ambiciosos demais”, pode ser bom dar atenção à nossa própria auto-imagem como um país acomodado em um papel de “importador” de inovações.

Quem sabe podemos cogitar a possibilidade de sermos, um dia, uma sociedade capaz de imaginar e realizar o que nenhuma outra imaginou e realizou?

Para ler os ensaios anteriores da série, clique abaixo:
Novo Ciclo Global de Inovação – Parte 1
Novo Ciclo Global de Inovação – Parte 2

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