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Novo ciclo global de inovação – Parte 2

Há décadas, fala-se que estamos a caminho de uma “economia pós-industrial”. Mas, o que significa isso? E quando isso vai acontecer?

A economia pós-industrial

Por Caio Vassão – consultor, professor, pesquisador e Visionário Residente na Kyvo.

Nesse segundo ensaio sobre o “Novo Ciclo Global de Inovação”, Caio Vassão explora o conceito da “economia pós-industrial”, e como ele se manifesta na sociedade, no consumo, nas organizações e cria novas oportunidades.

Para ler o primeiro ensaio da série sobre o Novo Ciclo Global de Inovação, clique aqui.

A Imprensa, o verdadeiro início da era industrial (1440). O Microchip, a base da revolução digital. Se a imagem à esquerda te parece antiga, é porque a indústria transformou a sociedade de um modo profundo, criando um mundo que Gutenberg não reconheceria. E se a imagem à direita te parece atual, mesmo que exótica, tenha certeza que o mundo que a microeletrônica está criando nem começou a se revelar. (Imagens: Jost Amman, Wikimedia; “Zooming on a Microchip”, NISENet.)

Uma nova economia e uma nova sociedade

Há décadas, fala-se que estamos a caminho de uma “economia pós-industrial”.

Mas, o que significa isso? E quando isso vai acontecer?

Uma economia pós-industrial não é uma economia “anti-industrial”: não vamos voltar para um modo de vida pré-industrial, dominado por meios de produção de baixa eficiência e alto custo social, como o artesanato e a agricultura medieval.

A sociedade e a economia pós-industriais são aquelas que superam a predominância do setor sócio-econômico da indústria e o “jeito industrial” de gerenciar as organizações e sociedade.

Mas, ainda assim, nos beneficiaremos do que a indústria tem de melhor para nos dar: eficiência dos processos produtivos, obsolescência do trabalho pesado, abundância de itens de primeira necessidade, conforto e bem-estar trazidos por infraestruturas complexas, integração social, econômica e cultural em escala planetária.

A boa notícia é que, mesmo que muita gente não saiba, a sociedade pós-industrial já é um fato consumado: a maior parte da economia global está, hoje, no setor terciário (comércio e serviços), incluindo o Brasil e praticamente todos os países que eram chamados de “sub-desenvolvidos”.

Muita gente ainda acredita que a economia brasileira — e global — roda em torno dos setores primário (agricultura, mineração, extrativismo) e secundário (indústria e meios de transformação). Quando, na verdade, já vivemos hoje em uma economia predominantemente baseada no setor terciário (comércio e serviços).

Mesmo que nossa auto-imagem ainda seja de um país agrário, pouco desenvolvido, sequer industrializado, o Brasil — como a maior parte do mundo — é um país de economia terciária. Esses dados são aproximados (cada instituto de estatística faz cálculos ligeiramente diferentes), mas são quase um retrato da economia global atual. As diferenças entre a conformação sócio-econômica dos países, hoje, é surpreendentemente pequena. (Imagem: Bootstrap/Caio Vassão, a partir de dados: CIA World Factbook; Economy of Brazil/Wikipedia.)
 

Há muito tempo, mesmo antes da colonização europeia, o Brasil foi uma economia agrária, concentrada no setor primário — e continuou assim durante todo o período colonial até o início do século XX quando viveu sua Revolução Industrial.

A partir desse período de industrialização, particularmente intenso nas décadas de 1950 e 1960, nos transformamos em uma economia marcadamente industrial, continuando assim até a década de 1990.

Desde a explosão global das tecnologias da informação e comunicação, da automação na indústria e na produção rural, não somos mais uma economia predominantemente industrial (muito menos agrária), e sim sustentada pelo mercado interno de comércio e serviços, em uma sociedade predominantemente urbana (somos um dos países mais urbanizados do mundo, com taxa superior a 80%).

Isso não significa que o Brasil não tem um setor agrícola e minerador de destaque mundial — como é sabido — ou, então, que a indústria tenha desaparecido do nosso território.

Ser uma sociedade de economia terciária significa que, mesmo que os setores primário e secundário sejam enormes, eles não são os mais importantes para nossa economia: ainda hoje, somos os maiores produtores e exportadores de diversos dos importantes itens agrícolas, minerais e industriais que circulam na economia global.

Mas, como isso é possível?

Mesmo que o Brasil seja líder de setores como a produção de soja e derivados, por exemplo, exportando volumes monstruosos, como é possível que esse setor não seja mais tão importante para nossa economia?

Cada setor subsidia o anterior

A resposta está no ticket médio de cada um dos setores: quanto custa um produto em cada setor?
Vejamos como o valor comercial da mesma matéria que é extraída da natureza, beneficiada pela indústria, e convertida em serviço evolui enquanto vamos do setor primário até o setor terciário.

Imagine que uma tonelada de um produto agrícola, como o açaí, por exemplo. Colhido na floresta, sem beneficiamento digamos que ele custa “1 unidade” de valor.

Após processamento — limpeza, raspagem, mistura, homogeneização, congelamento, embalagem e rotulagem — quanto vale essa mesma tonelada? Pode chegar a 5 vezes aquela unidade de valor.

E quanto vale essa mesma tonelada, servida em inúmeras tigelas em padarias descoladas de mundo afora? Pode chegar a 20 vezes aquela tonelada inicial.

No caso da indústria pesada, como do minério de ferro e aço, o salto entre cada setor tende a ser ainda maior: a partir do valor de 1 unidade no setor primário, para 10 unidades no secundário, e até 100 unidades no setor terciário.

Quanto se paga por uma unidade material (1 tonelada de açaí, por exemplo) em cada setor da economia? O salto de valor/preço entre um setor e o próximo — mais avançado, complexo e abstrato — é sempre considerável. Inclusive é isso o que torna possível que cada setor “compre” seus insumos do setor menos desenvolvido. Cada salto envolve beneficiamento e agregação de valor. O setor quaternário, sendo o mais abstrato, pode nem mesmo ser reconhecido pelos empreendedores e pelo governo, por outro lado, quando reconhecido e explorado pode gerar retorno em escalas sem precedentes históricos (vide as grandes corporações baseadas em dados e informação). (Imagem: Bootstrap/Caio Vassão a partir de entrevistas com especialistas de diversas áreas e setores.)


Mesmo que esses valores que apresentei sejam muito grosseiros e aproximativos, eles ilustram um princípio: à medida que migramos do setor primário até o setor terciário, o valor cobrado pela mesma unidade material de produto salta entre ordens de grandeza (de 5 vezes até 20 vezes na passagem de um setor para o próximo). O beneficiamento agrega valor ao produto, e o dinheiro que se paga por aquela unidade material cresce de modo exponencial, e não linear.

Existe uma imagem falsa que temos em que os setores “mais abstratos” da economia só podem ser proporcionais a uma fração menor dos setores “mais concretos”: muita gente acredita que o valor de um produto em uma padaria, por exemplo, só pode ser uma fração do que custaria uma tonelada de trigo no produtor rural.

Na verdade, é o contrário.

É o setor terciário que produz lucros suficientes que subsidiam os setores secundário e primário: quando você compra um pão na chapa, você está pagando por toda a cadeia produtiva que leva esse pão até você, incluindo o lucro do dono da padaria, o salário do garçom, o aluguel, a administração e a manutenção do espaço. Os insumos que vieram dos setores anteriores compõem um pedaço relativamente pequeno do preço final do produto no setor terciário.

Transformações estruturais da economia e da civilização

A parte realmente incrível dessa análise é perceber que há um movimento histórico constante de migração da humanidade de um setor da economia para o próximo, começando no setor primário, indo até o setor terciário e adiante.

Historicamente, todas as sociedades começam no setor primário: somos caçadores e coletores. Depois de dezenas de milhares de anos, nos tornamos agricultores, pecuaristas e mineradores. A partir da chamada “Revolução Neolítica”, a economia passa a revolver em torno do setor primário. Mesmo nesse passado, já existem o setores secundário (artesanato e transformação) e terciário (comércio e serviços), mas são pequenos em comparação o setor primário.

Com a revolução industrial, entramos em uma economia que o economista francês Fourastié chama de “economia de transição”: as sociedades industriais.

Nosso imaginário atual a respeito de “como o mundo funciona” se formou durante esse período industrial de transição. É por isso que muita gente acredita que a economia ainda é predominantemente agrícola e/ou industrial. Essas são sociedades de “transição” porque certamente se transformarão em sociedades pós-industriais.

Ainda mais impressionante é o processo de aceleração da migração da economia e da força de trabalho entre os setores:

  • demoramos dezenas de milhares de anos para inventarmos a sociedade agrícola, vivendo como bandos de caçadores-coletores, e em sociedades tribais cada vez mais sofisticadas;
  • depois da invenção da agricultura — e também das cidades-estado — , vivemos milhares de anos nesse tipo de sociedade. É nesse longuíssimo período histórico que a maior parte do imaginário humano foi construído: ideias de como a economia funciona, os valores morais da sociedade, o modo como se organizam os grupos sociais e instituições, o trabalho no mundo cotidiano. Os mitos mais importantes que ainda hoje povoam nosso inconsciente coletivo;
  • com a Revolução Industrial, iniciada em fins do século XVIII, passamos por um período de pouco mais de 200 anos de transformações radicais na sociedade, economia e cultura. Surge o imaginário moderno, marcado pela ideia de gestão industrial, moralidade do trabalhador operário, a geopolítica dominada por países industriais, como Inglaterra e EUA, e as imagens de apocalipse iminente que hoje povoam o inconsciente coletivo —pois sabemos que estamos destruindo o planeta;
  • a partir da década de 1990, com a popularização maciça da computação e, consequentemente, da automação industrial e das atividades burocráticas, vemos ascensão da sociedade pós-industrial, e começamos a construir apressadamente um novo tipo de imaginário, ainda incompleto: sistema financeiro global, obsolescência das tecnologias tradicionais, a revolução tecnológica da computação e da telecomunicação, a vida urbana se torna o modo predominante de habitar o planeta.

Esse processo não pára com a emergência do setor terciário: a partir da explosão da internet e dos modelos de negócios e governança que dependem dela (pense no Über ou na Estônia), fica claro que, no futuro próximo, iremos além: para o setor quaternário!

O que é o setor quaternário?

É o setor movimentado pelas atividades criativas e de produção de conhecimento. A chamada economia da informação e da criação acelerada de novos produtos, serviços e soluções radicalmente diferentes do que a humanidade experimentou até agora.

Muita gente acredita que esse é um setor minúsculo e no qual, certamente, o Brasil não tem qualquer expressão.

Não ajuda muito que a “contabilidade oficial” dos órgãos nacionais de estatística, como o IBGE, ainda não levam em conta a existência do setor quaternário como um setor independente: na maior parte das estatísticas, as atividades que deveriam ser contabilizadas separadamente no setor quaternário são incluídas no terciário. Assim, fica difícil sabermos qual é o seu tamanho preciso.

Mas, é só estimar a importância de setores como os games, cinema, farmacêuticos, aeroespacial, educação e pesquisa, tecnologia da informação, biotecnologia, entre outros, e chega-se a uma conta grosseira em que esse setor contabiliza 10% do PIB global. No Brasil, esse setor tem um tamanho considerável: provavelmente em torno de 5% do PIB.

O que realmente importa não é ver o “retrato” atual da economia brasileira e global, e sim ver o movimento de transformação pelo qual a economia está passando: o coletivo humano demorou 80 mil anos para “entrar” no setor primário; 6 a 8 mil anos para migrar para o setor secundário; 200 anos para migrar para o setor terciário…

Obviamente, o modelo sócio-econômico baseado nos setores econômicos é uma simplificação de uma realidade muito mais complexa. No entanto, é muito útil para compreendermos movimentos de longa duração na história da humanidade. Essa análise de macro-escala de tempo permite ver um claro movimento de aceleração. E por mais que tenhamos dificuldade de conceber e compreender as mudanças em curso e que virão, isso não vai impedir que elas aconteçam. (Imagem: Bootstrap/Caio Vassão.)

Nota uma tendência de aceleração?
– Em quanto tempo a maioria da espécie humana estará no setor quaternário, produzindo conhecimento e trabalhando criativamente?
– Será que, segundo esse movimento exponencial, seremos uma sociedade global predominantemente quaternária em 10 anos?

Atualizando nosso imaginário

Se essa transformação te parece improvável e estranha, te convido a fazer um experimento mental: pense em um agricultor medieval tentando imaginar o mundo industrial — em 500 anos, haveriam cidades com milhões de habitantes, todas organizadas em torno de fábricas enormes, produzindo coisas em profusão.

Depois, imagine um industrial do séc. XIX tentando imaginar o mundo dominado pelas atividades de comércio e serviços: em 100 anos, as cidades seriam todas orientadas para o trabalho burocrático, comércio, serviços, e 60% a 70% da população global trabalharia em escritórios, lojas, transportes, educação e outras atividades do setor terciário.

Será que eles conseguiriam imaginar aquele futuro urbano, industrial, das lojas e escritórios?

É sempre muito difícil imaginar o futuro. Mas, podemos sempre contar com um processo sócio-econômico fundamental: a economia industrial passou a subsidiar o setor agrícola e de extração, à medida que a sociedade foi se industrializando, pois a movimentação econômica do setor industrial é muito maior do que a do setor agro-pecuário e de extração. Hoje, a economia de serviços subsidia os setores primários e secundários.

Do mesmo modo, a economia da informação e da criatividade irá subsidiar os três setores anteriores.

Por outro lado, o período industrial ainda domina nosso imaginário.

Podemos estar já em uma economia de serviços, mas ainda carregamos o ecossistema industrial em nossas costas, e continuamos a devastar a natureza.

Como será a transformação?

No futuro, saberemos que estaremos vivendo em uma economia do conhecimento e da criatividade, uma economia de fato pós-industrial, quando os principais aspectos negativos da indústria estarão obsoletos:

  • Não existirá lixo, porque todos os processos serão cíclicos/circulares — antes da revolução industrial, não havia o conceito de lixo; hoje, do mesmo modo que produzimos itens de consumo de massa, também produzimos lixo em massa — todo produto industrial é um objeto aguardando a hora de virar lixo;

Versão resumida da evolução de uma “economia predatória e de descarte” para uma economia circular: redução de retirada de insumos da natureza, a redução drástica (ou o fim) do descarte, a redução intensa das necessidades materiais e energéticas da produção industrial, o reuso de quase todos os bens de consumo, a conversão da matriz energética para fontes renováveis. Tendo-se em vista o incremento das necessidades de consumo da “nova classe média global”, essa é uma transformação urgente. (Imagem: Bootstrap/Caio Vassão.)

  • Não existirão “produtos que vendem mal” ou o consumo desenfreado, porque todos os produtos serão concebidos para um grupo social específico, envolvendo a participação ativa destes na concepção desses produtos (e serviços) — teremos superado o conceito do “público-alvo” que, na realidade, é sempre um grupo social imaginado pela gestão industrial que não compreende, e não quer compreender, a sociedade e a cultura;
Consumo ansioso em uma liquidação de Black Friday, e um “hackerspace”, um laboratório em que pessoas aprendem a cocriar. O ciclo de invenção de novos produtos/serviços e sua promoção por meio do marketing/propaganda do consumo contemporâneo está chegando à saturação. Ao mesmo tempo que um novo repertório de práticas sociais de colaboração e cocriação indica que há outra maneira de suprir as necessidades das pessoas, de modo complexo e sofisticado, muito além do planejamento de marketing. (Imagens: Nacho Doce/REUTERS; Mitch Altman/Wikimedia.)
  • Não haverá poluição, porque todos os processos produtivos serão regenerativos; como o lixo, a poluição também é produzida em massa — antes da revolução industrial, os artesãos utilizavam técnicas pouco poluentes porque não se conhecia físico-química que pudesse produzir impactos devastadores sobre o ambiente; agora, esse mesmo conhecimento científico que promoveu aquela devastação será utilizado para produzir saúde e reparação sócio-ambientais;
Não haverá poluição, porque todos os processos produtivos serão regenerativos; como o lixo, a poluição também é produzida em massa — antes da revolução industrial, os artesãos utilizavam técnicas pouco poluentes porque não se conhecia físico-química que pudesse produzir impactos devastadores sobre o ambiente; agora, esse mesmo conhecimento científico que promoveu aquela devastação será utilizado para produzir saúde e reparação sócio-ambientais;
  • Não haverá ambiente urbano inóspito, porque não faremos a cidade e o campo se comportarem e se organizarem como parte de uma máquina produtiva desconectada dos processos biológicos do planeta — a revolução industrial criou um jeito de construir cidades que as transformam em departamentos de uma máquina industrial; assim como converteram o campo em uma sucursal da indústria, exigindo que a natureza responda aos ciclos de planejamento financeiro, e não o contrário.
Congestionamento nas Vias Marginais em São Paulo. A Estação das Docas em Belém do Pará. A primeira situação é expressão de uma urbanidade criada para atender as demandas da gestão industrial. A segunda é a ressignificação da herança industrial, a convertendo em um equipamento urbano inclusivo, acolhedor e aberto aos ciclos da natureza. Existem muitas outras iniciativas que procuram integrar os ciclos naturais e nossas necessidades no meio urbano, como os jardins comestíveis, por exemplo. (Imagens: Marco Ambrosio; Cayambe.)

Mas esses aspectos da transformação para uma sociedade regenerativa e pós-industrial são muito amplos. Ainda é difícil vislumbrar os detalhes de como seria essa vida pós-industrial. Afinal, ela ainda não existe!

Alan Kay é um destacado cientista da computação, um dos principais responsáveis pelo desenvolvimento da computação pessoal como a conhecemos hoje. Quando pressionado pelos executivos da Xerox, para que desse uma resposta quanto aos produtos que estava desenvolvendo no Xerox PARC, Kay afirmou: “A melhor maneira de prever o futuro é inventá-lo!

Um exemplo de como fazer isso:

– Os programas de aceleração deveriam, a partir de agora, contemplar o “novo ciclo global de inovação”, e convocar a inovação regenerativa, em todos os setores da sociedade.

– Todas as inovações deveriam construir “mapas de ecossistema”, nos quais poderemos visualizar o papel e o impacto das propostas inovadoras sobre a sociedade e o ecossistema.

Tanta coisa a se fazer!

A nova classe média global

Outro aspecto crucial da minha proposta de um “novo ciclo global de inovação” é reconhecer a tendência acelerada de incremento de bem-estar em escala global — independentemente dos altos e baixos da geopolítica, das crises globais e dos sistemas político-econômicos de cada país.

Muita gente diz que esse “sucesso” é devido ao capitalismo. Eu discordo: ele é resultado da maciça industrialização planetária.

A indústria é uma “máquina de abundância”, produzindo em quantidades enormes desde itens de primeira necessidade até artigos de luxo, e qualquer coisa no meio do caminho, de medicamentos a bonés descolados, carros e computadores, alimentos e insumos para a construção civil.

Essa abundância independe do sistema político-econômico: hoje, praticamente todos os países do mundo estão industrializados ou superaram esse período, já em migração para o setor terciário.

A indústria gera a abundância que torna ela própria obsoleta, impulsionando a explosão do setor de comércio e serviços.

Estudos da OECD indicam que estamos vivendo uma explosão da classe média global: em um estudo de 2013, previu-se que teríamos até 2030 mais da metade da população global na classe média.

No entanto, em 2018 já atingimos essa metade, muito antes do previsto. Ou seja, a tendência é que essa nova classe média será bem maior do que o previsto, possivelmente 6 ou 7 bilhões de pessoas. De uma população global de no máximo 9 bilhões de pessoas!

Visualização das estimativas de crescimento da classe média global nas próximas décadas (até 2030, à esquerda, e até 2050, à direita no alto). Essas estimativas estão um tanto defasadas, dado o crescimento ainda mais acelerado do que o previsto. E protagonismo da América Latina e da África é maior do que o esperado. (Dados e imagens: OECD; GW&K Investment Management.)

Um ponto importante é que a maior parte dessa nova classe média global está emergindo nos países fora do “Eixo Norte” (Estados Unidos, Europa e Japão), com ampla predominância dos países asiáticos, africanos e latino-americanos.

Eu sei que é difícil acreditar, mas a tendência ao bem-estar social, pelo menos do ponto de vista econômico, parece ser inevitável. A exemplo da evolução do próprio Brasil. Veja essa imagem da evolução do IDH brasileiro nos últimos 30 anos:

Evolução do IDH (índice de desenvolvimento humano) no Brasil nos últimos 30 anos. (Mapas: Allice Hunter, a partir de dados do Ipea e do PNUD).

Isso significa que estamos em meio a uma transformação profunda da sociedade global: se até poucas décadas atrás a grande preocupação dos governos e organizações de interesse social era reduzir a pobreza — que naquela época, parceria crônica e insolúvel — hoje nossa preocupação deveria ser como organizar uma sociedade global de alto poder de consumo. Portanto de alto impacto ambiental.

Como viabilizar a entrada dessa multidão em uma classe social caracterizada pelo consumo conspícuo, orientada pela auto-realização pessoal, e capaz de destruir aquilo que ama?

(Pense nas compras de natal que tentam compensar o distanciamento sócio-emocional em que vivemos, no individualismo egoísta tão comum hoje em dia, na devastação que os destinos turísticos sofreram nos últimos 40 ou 50 anos.)

Nos tornamos vítimas do nosso sucesso: o consumo da classe média é a maior força predatória do planeta.

Enfrentamos o maior desafio de nossa história: como viabilizar que tanta gente entre na classe media sem destruir o bioma do planeta?

Um novo tipo de classe média precisa ser inventado no “novo ciclo global de inovação”.

A superpopulação foi evitada, mas isso não é o suficiente

Uma boa notícia é que a população global tende a não aumentar tanto quanto se esperava: na década de 1980 imaginava-se um futuro em que a população mundial chegaria a 20 bilhões ou mesmo 30 bilhões de pessoas.

Mas, hoje em dia, sabemos que a população global já entrou em uma fase de decréscimo: ela tende a diminuir drasticamente, reduzindo-se a, talvez, 4 bilhões de habitantes até o fim do século XII — a taxa de natalidade global vem diminuindo há anos, e está hoje abaixo do “nível de reposição” na maioria dos países (2.1 filhos/casal).

Esse é um fenômeno que já vinha sendo observado nos países do Eixo Norte, como Japão, EUA e Europa. Mas agora ele se alastra pelo mundo todo. Isso já se aplica ao Brasil, e devemos ter queda populacional nos próximos anos.

Mas, até lá, o que fazer com essa massa de gente que quer consumir como se não houvesse amanhã? Como se diz por aí: não há planeta suficiente para tanto consumo!

Novos hábitos para uma nova classe média global

O que é necessário é que essa população tenha um novo modo ou um novo estilo de vida. É crucial que essa seja de fato uma “nova classe média”, com padrão de consumo completamente diferente da “velha classe média” dos países desenvolvidos.

Como falei no primeiro ensaio dessa série, a infraestrutura dos países do Eixo Norte é, por incrível que pareça, obsoleta — especialmente sob a ótica sócio-ambiental e urbana. A última coisa que deveríamos fazer seria “copiar” seus hábitos e sistemas tecnológicos.

Na verdade, precisamos de uma reinvenção completa da “matriz tecnológica” que sustenta nossas vidas — e isso significa reinventar também os hábitos urbanos e o cotidiano das grandes cidades.

Os exemplos que dei acima — saneamento básico, energia e mobilidade urbana — podem ser interessantes para ilustrar esse argumento, mas muito mais deve ser feito para construir-se um novo modo de vida não apenas sustentável, mas regenerativo.

Trata-se da reinvenção da vida urbana de cabo a rabo.

Se isso parece um tanto exagerado, lembre-se que a sociedade humana está agindo como a “pedra que afunda o planeta“. As “ações de ajuste” ou de “mitigação de impactos” não serão suficientes para mudar esse cenário.

Há anos se fala de uma “idade das coisas leves”, um futuro em que as relações produtivas e a parafernália do nosso cotidiano são tão leves que têm mínimo impacto sobre o ambiente. Mas, mesmo cogitando-se essa possibilidade de um “futuro leve”, pouco se fez a respeito.

É chegada a hora de realizar uma reinvenção radical de praticamente todas as matrizes tecnológicas: é por esse motivo que não é suficiente mitigar os impactos sócio-ambientais.

É necessário inventar processos completamente novos, baseados em tecnologias de altíssimo grau de eficiência, e principalmente planejar cada novo empreendimento compreendendo que ele é parte de um ecossistema maior, mais complexo e mesmo assim frágil, que precisa ser cuidado e nutrido.

Outra boa notícia é que há um conhecimento enorme de tecnologias ambientais e sociais que pode ser utilizado na invenção de novos serviços urbanos alinhados com essas novas demandas sócio-ambientais!

Tudo depende de estarmos dispostos a sermos parte da solução, e não do problema.

Para ler o primeiro ensaio da série sobre o Novo Ciclo Global de Inovação, clique aqui.

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