A economia pós-industrial
Por Caio Vassão – consultor, professor, pesquisador e Visionário Residente na Kyvo.
Nesse segundo ensaio sobre o “Novo Ciclo Global de Inovação”, Caio Vassão explora o conceito da “economia pós-industrial”, e como ele se manifesta na sociedade, no consumo, nas organizações e cria novas oportunidades.
Para ler o primeiro ensaio da série sobre o Novo Ciclo Global de Inovação, clique aqui.
Uma nova economia e uma nova sociedade
Há décadas, fala-se que estamos a caminho de uma “economia pós-industrial”.
Mas, o que significa isso? E quando isso vai acontecer?
Uma economia pós-industrial não é uma economia “anti-industrial”: não vamos voltar para um modo de vida pré-industrial, dominado por meios de produção de baixa eficiência e alto custo social, como o artesanato e a agricultura medieval.
A sociedade e a economia pós-industriais são aquelas que superam a predominância do setor sócio-econômico da indústria e o “jeito industrial” de gerenciar as organizações e sociedade.
Mas, ainda assim, nos beneficiaremos do que a indústria tem de melhor para nos dar: eficiência dos processos produtivos, obsolescência do trabalho pesado, abundância de itens de primeira necessidade, conforto e bem-estar trazidos por infraestruturas complexas, integração social, econômica e cultural em escala planetária.
A boa notícia é que, mesmo que muita gente não saiba, a sociedade pós-industrial já é um fato consumado: a maior parte da economia global está, hoje, no setor terciário (comércio e serviços), incluindo o Brasil e praticamente todos os países que eram chamados de “sub-desenvolvidos”.
Muita gente ainda acredita que a economia brasileira — e global — roda em torno dos setores primário (agricultura, mineração, extrativismo) e secundário (indústria e meios de transformação). Quando, na verdade, já vivemos hoje em uma economia predominantemente baseada no setor terciário (comércio e serviços).
Há muito tempo, mesmo antes da colonização europeia, o Brasil foi uma economia agrária, concentrada no setor primário — e continuou assim durante todo o período colonial até o início do século XX quando viveu sua Revolução Industrial.
A partir desse período de industrialização, particularmente intenso nas décadas de 1950 e 1960, nos transformamos em uma economia marcadamente industrial, continuando assim até a década de 1990.
Desde a explosão global das tecnologias da informação e comunicação, da automação na indústria e na produção rural, não somos mais uma economia predominantemente industrial (muito menos agrária), e sim sustentada pelo mercado interno de comércio e serviços, em uma sociedade predominantemente urbana (somos um dos países mais urbanizados do mundo, com taxa superior a 80%).
Isso não significa que o Brasil não tem um setor agrícola e minerador de destaque mundial — como é sabido — ou, então, que a indústria tenha desaparecido do nosso território.
Ser uma sociedade de economia terciária significa que, mesmo que os setores primário e secundário sejam enormes, eles não são os mais importantes para nossa economia: ainda hoje, somos os maiores produtores e exportadores de diversos dos importantes itens agrícolas, minerais e industriais que circulam na economia global.
Mas, como isso é possível?
Mesmo que o Brasil seja líder de setores como a produção de soja e derivados, por exemplo, exportando volumes monstruosos, como é possível que esse setor não seja mais tão importante para nossa economia?
Cada setor subsidia o anterior
A resposta está no ticket médio de cada um dos setores: quanto custa um produto em cada setor?
Vejamos como o valor comercial da mesma matéria que é extraída da natureza, beneficiada pela indústria, e convertida em serviço evolui enquanto vamos do setor primário até o setor terciário.
Imagine que uma tonelada de um produto agrícola, como o açaí, por exemplo. Colhido na floresta, sem beneficiamento digamos que ele custa “1 unidade” de valor.
Após processamento — limpeza, raspagem, mistura, homogeneização, congelamento, embalagem e rotulagem — quanto vale essa mesma tonelada? Pode chegar a 5 vezes aquela unidade de valor.
E quanto vale essa mesma tonelada, servida em inúmeras tigelas em padarias descoladas de mundo afora? Pode chegar a 20 vezes aquela tonelada inicial.
No caso da indústria pesada, como do minério de ferro e aço, o salto entre cada setor tende a ser ainda maior: a partir do valor de 1 unidade no setor primário, para 10 unidades no secundário, e até 100 unidades no setor terciário.
Quanto se paga por uma unidade material (1 tonelada de açaí, por exemplo) em cada setor da economia? O salto de valor/preço entre um setor e o próximo — mais avançado, complexo e abstrato — é sempre considerável. Inclusive é isso o que torna possível que cada setor “compre” seus insumos do setor menos desenvolvido. Cada salto envolve beneficiamento e agregação de valor. O setor quaternário, sendo o mais abstrato, pode nem mesmo ser reconhecido pelos empreendedores e pelo governo, por outro lado, quando reconhecido e explorado pode gerar retorno em escalas sem precedentes históricos (vide as grandes corporações baseadas em dados e informação). (Imagem: Bootstrap/Caio Vassão a partir de entrevistas com especialistas de diversas áreas e setores.)
Mesmo que esses valores que apresentei sejam muito grosseiros e aproximativos, eles ilustram um princípio: à medida que migramos do setor primário até o setor terciário, o valor cobrado pela mesma unidade material de produto salta entre ordens de grandeza (de 5 vezes até 20 vezes na passagem de um setor para o próximo). O beneficiamento agrega valor ao produto, e o dinheiro que se paga por aquela unidade material cresce de modo exponencial, e não linear.
Existe uma imagem falsa que temos em que os setores “mais abstratos” da economia só podem ser proporcionais a uma fração menor dos setores “mais concretos”: muita gente acredita que o valor de um produto em uma padaria, por exemplo, só pode ser uma fração do que custaria uma tonelada de trigo no produtor rural.
Na verdade, é o contrário.
É o setor terciário que produz lucros suficientes que subsidiam os setores secundário e primário: quando você compra um pão na chapa, você está pagando por toda a cadeia produtiva que leva esse pão até você, incluindo o lucro do dono da padaria, o salário do garçom, o aluguel, a administração e a manutenção do espaço. Os insumos que vieram dos setores anteriores compõem um pedaço relativamente pequeno do preço final do produto no setor terciário.
Transformações estruturais da economia e da civilização
A parte realmente incrível dessa análise é perceber que há um movimento histórico constante de migração da humanidade de um setor da economia para o próximo, começando no setor primário, indo até o setor terciário e adiante.
Historicamente, todas as sociedades começam no setor primário: somos caçadores e coletores. Depois de dezenas de milhares de anos, nos tornamos agricultores, pecuaristas e mineradores. A partir da chamada “Revolução Neolítica”, a economia passa a revolver em torno do setor primário. Mesmo nesse passado, já existem o setores secundário (artesanato e transformação) e terciário (comércio e serviços), mas são pequenos em comparação o setor primário.
Com a revolução industrial, entramos em uma economia que o economista francês Fourastié chama de “economia de transição”: as sociedades industriais.
Nosso imaginário atual a respeito de “como o mundo funciona” se formou durante esse período industrial de transição. É por isso que muita gente acredita que a economia ainda é predominantemente agrícola e/ou industrial. Essas são sociedades de “transição” porque certamente se transformarão em sociedades pós-industriais.
Ainda mais impressionante é o processo de aceleração da migração da economia e da força de trabalho entre os setores:
- demoramos dezenas de milhares de anos para inventarmos a sociedade agrícola, vivendo como bandos de caçadores-coletores, e em sociedades tribais cada vez mais sofisticadas;
- depois da invenção da agricultura — e também das cidades-estado — , vivemos milhares de anos nesse tipo de sociedade. É nesse longuíssimo período histórico que a maior parte do imaginário humano foi construído: ideias de como a economia funciona, os valores morais da sociedade, o modo como se organizam os grupos sociais e instituições, o trabalho no mundo cotidiano. Os mitos mais importantes que ainda hoje povoam nosso inconsciente coletivo;
- com a Revolução Industrial, iniciada em fins do século XVIII, passamos por um período de pouco mais de 200 anos de transformações radicais na sociedade, economia e cultura. Surge o imaginário moderno, marcado pela ideia de gestão industrial, moralidade do trabalhador operário, a geopolítica dominada por países industriais, como Inglaterra e EUA, e as imagens de apocalipse iminente que hoje povoam o inconsciente coletivo —pois sabemos que estamos destruindo o planeta;
- a partir da década de 1990, com a popularização maciça da computação e, consequentemente, da automação industrial e das atividades burocráticas, vemos ascensão da sociedade pós-industrial, e começamos a construir apressadamente um novo tipo de imaginário, ainda incompleto: sistema financeiro global, obsolescência das tecnologias tradicionais, a revolução tecnológica da computação e da telecomunicação, a vida urbana se torna o modo predominante de habitar o planeta.
Esse processo não pára com a emergência do setor terciário: a partir da explosão da internet e dos modelos de negócios e governança que dependem dela (pense no Über ou na Estônia), fica claro que, no futuro próximo, iremos além: para o setor quaternário!
O que é o setor quaternário?
É o setor movimentado pelas atividades criativas e de produção de conhecimento. A chamada economia da informação e da criação acelerada de novos produtos, serviços e soluções radicalmente diferentes do que a humanidade experimentou até agora.
Muita gente acredita que esse é um setor minúsculo e no qual, certamente, o Brasil não tem qualquer expressão.
Não ajuda muito que a “contabilidade oficial” dos órgãos nacionais de estatística, como o IBGE, ainda não levam em conta a existência do setor quaternário como um setor independente: na maior parte das estatísticas, as atividades que deveriam ser contabilizadas separadamente no setor quaternário são incluídas no terciário. Assim, fica difícil sabermos qual é o seu tamanho preciso.
Mas, é só estimar a importância de setores como os games, cinema, farmacêuticos, aeroespacial, educação e pesquisa, tecnologia da informação, biotecnologia, entre outros, e chega-se a uma conta grosseira em que esse setor contabiliza 10% do PIB global. No Brasil, esse setor tem um tamanho considerável: provavelmente em torno de 5% do PIB.
O que realmente importa não é ver o “retrato” atual da economia brasileira e global, e sim ver o movimento de transformação pelo qual a economia está passando: o coletivo humano demorou 80 mil anos para “entrar” no setor primário; 6 a 8 mil anos para migrar para o setor secundário; 200 anos para migrar para o setor terciário…
Obviamente, o modelo sócio-econômico baseado nos setores econômicos é uma simplificação de uma realidade muito mais complexa. No entanto, é muito útil para compreendermos movimentos de longa duração na história da humanidade. Essa análise de macro-escala de tempo permite ver um claro movimento de aceleração. E por mais que tenhamos dificuldade de conceber e compreender as mudanças em curso e que virão, isso não vai impedir que elas aconteçam. (Imagem: Bootstrap/Caio Vassão.)Nota uma tendência de aceleração?
– Em quanto tempo a maioria da espécie humana estará no setor quaternário, produzindo conhecimento e trabalhando criativamente?
– Será que, segundo esse movimento exponencial, seremos uma sociedade global predominantemente quaternária em 10 anos?
Atualizando nosso imaginário
Se essa transformação te parece improvável e estranha, te convido a fazer um experimento mental: pense em um agricultor medieval tentando imaginar o mundo industrial — em 500 anos, haveriam cidades com milhões de habitantes, todas organizadas em torno de fábricas enormes, produzindo coisas em profusão.
Depois, imagine um industrial do séc. XIX tentando imaginar o mundo dominado pelas atividades de comércio e serviços: em 100 anos, as cidades seriam todas orientadas para o trabalho burocrático, comércio, serviços, e 60% a 70% da população global trabalharia em escritórios, lojas, transportes, educação e outras atividades do setor terciário.
Será que eles conseguiriam imaginar aquele futuro urbano, industrial, das lojas e escritórios?
É sempre muito difícil imaginar o futuro. Mas, podemos sempre contar com um processo sócio-econômico fundamental: a economia industrial passou a subsidiar o setor agrícola e de extração, à medida que a sociedade foi se industrializando, pois a movimentação econômica do setor industrial é muito maior do que a do setor agro-pecuário e de extração. Hoje, a economia de serviços subsidia os setores primários e secundários.
Do mesmo modo, a economia da informação e da criatividade irá subsidiar os três setores anteriores.
Por outro lado, o período industrial ainda domina nosso imaginário.
Podemos estar já em uma economia de serviços, mas ainda carregamos o ecossistema industrial em nossas costas, e continuamos a devastar a natureza.
Como será a transformação?
No futuro, saberemos que estaremos vivendo em uma economia do conhecimento e da criatividade, uma economia de fato pós-industrial, quando os principais aspectos negativos da indústria estarão obsoletos:
- Não existirá lixo, porque todos os processos serão cíclicos/circulares — antes da revolução industrial, não havia o conceito de lixo; hoje, do mesmo modo que produzimos itens de consumo de massa, também produzimos lixo em massa — todo produto industrial é um objeto aguardando a hora de virar lixo;
Versão resumida da evolução de uma “economia predatória e de descarte” para uma economia circular: redução de retirada de insumos da natureza, a redução drástica (ou o fim) do descarte, a redução intensa das necessidades materiais e energéticas da produção industrial, o reuso de quase todos os bens de consumo, a conversão da matriz energética para fontes renováveis. Tendo-se em vista o incremento das necessidades de consumo da “nova classe média global”, essa é uma transformação urgente. (Imagem: Bootstrap/Caio Vassão.)
- Não existirão “produtos que vendem mal” ou o consumo desenfreado, porque todos os produtos serão concebidos para um grupo social específico, envolvendo a participação ativa destes na concepção desses produtos (e serviços) — teremos superado o conceito do “público-alvo” que, na realidade, é sempre um grupo social imaginado pela gestão industrial que não compreende, e não quer compreender, a sociedade e a cultura;
- Não haverá poluição, porque todos os processos produtivos serão regenerativos; como o lixo, a poluição também é produzida em massa — antes da revolução industrial, os artesãos utilizavam técnicas pouco poluentes porque não se conhecia físico-química que pudesse produzir impactos devastadores sobre o ambiente; agora, esse mesmo conhecimento científico que promoveu aquela devastação será utilizado para produzir saúde e reparação sócio-ambientais;
- Não haverá ambiente urbano inóspito, porque não faremos a cidade e o campo se comportarem e se organizarem como parte de uma máquina produtiva desconectada dos processos biológicos do planeta — a revolução industrial criou um jeito de construir cidades que as transformam em departamentos de uma máquina industrial; assim como converteram o campo em uma sucursal da indústria, exigindo que a natureza responda aos ciclos de planejamento financeiro, e não o contrário.
Mas esses aspectos da transformação para uma sociedade regenerativa e pós-industrial são muito amplos. Ainda é difícil vislumbrar os detalhes de como seria essa vida pós-industrial. Afinal, ela ainda não existe!
Alan Kay é um destacado cientista da computação, um dos principais responsáveis pelo desenvolvimento da computação pessoal como a conhecemos hoje. Quando pressionado pelos executivos da Xerox, para que desse uma resposta quanto aos produtos que estava desenvolvendo no Xerox PARC, Kay afirmou: “A melhor maneira de prever o futuro é inventá-lo!“
Um exemplo de como fazer isso:
– Os programas de aceleração deveriam, a partir de agora, contemplar o “novo ciclo global de inovação”, e convocar a inovação regenerativa, em todos os setores da sociedade.
– Todas as inovações deveriam construir “mapas de ecossistema”, nos quais poderemos visualizar o papel e o impacto das propostas inovadoras sobre a sociedade e o ecossistema.
Tanta coisa a se fazer!
A nova classe média global
Outro aspecto crucial da minha proposta de um “novo ciclo global de inovação” é reconhecer a tendência acelerada de incremento de bem-estar em escala global — independentemente dos altos e baixos da geopolítica, das crises globais e dos sistemas político-econômicos de cada país.
Muita gente diz que esse “sucesso” é devido ao capitalismo. Eu discordo: ele é resultado da maciça industrialização planetária.
A indústria é uma “máquina de abundância”, produzindo em quantidades enormes desde itens de primeira necessidade até artigos de luxo, e qualquer coisa no meio do caminho, de medicamentos a bonés descolados, carros e computadores, alimentos e insumos para a construção civil.
Essa abundância independe do sistema político-econômico: hoje, praticamente todos os países do mundo estão industrializados ou superaram esse período, já em migração para o setor terciário.
A indústria gera a abundância que torna ela própria obsoleta, impulsionando a explosão do setor de comércio e serviços.
Estudos da OECD indicam que estamos vivendo uma explosão da classe média global: em um estudo de 2013, previu-se que teríamos até 2030 mais da metade da população global na classe média.
No entanto, em 2018 já atingimos essa metade, muito antes do previsto. Ou seja, a tendência é que essa nova classe média será bem maior do que o previsto, possivelmente 6 ou 7 bilhões de pessoas. De uma população global de no máximo 9 bilhões de pessoas!
Visualização das estimativas de crescimento da classe média global nas próximas décadas (até 2030, à esquerda, e até 2050, à direita no alto). Essas estimativas estão um tanto defasadas, dado o crescimento ainda mais acelerado do que o previsto. E protagonismo da América Latina e da África é maior do que o esperado. (Dados e imagens: OECD; GW&K Investment Management.)Um ponto importante é que a maior parte dessa nova classe média global está emergindo nos países fora do “Eixo Norte” (Estados Unidos, Europa e Japão), com ampla predominância dos países asiáticos, africanos e latino-americanos.
Eu sei que é difícil acreditar, mas a tendência ao bem-estar social, pelo menos do ponto de vista econômico, parece ser inevitável. A exemplo da evolução do próprio Brasil. Veja essa imagem da evolução do IDH brasileiro nos últimos 30 anos: