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Personas: existe um caminho que pensa o indivíduo sem generalizações ferramentais?

E como a teoria social pode responder a essa pergunta e fazer muitas outras

Por Guilherme Hobi e Paula Neves*

Cursos extensos ou curtos, workshops, palestras rápidas e até artigos online incentivam e ensinam como fazer e usar uma persona, prometendo assim a solução para entender públicos e criar melhores produtos e serviços. No nosso dia-a-dia como pesquisadores e designers de serviço, já sabemos que não é bem assim – fórmulas prontas quase nunca funcionam, seja para perder peso ou entender seu público. 

Mas vamos começar do início… Uma persona é geralmente definida como um personagem fictício que ajuda a humanizar um grupo de clientes/potenciais clientes, ampliando o entendimento – sobre estes – e fornecendo ali a imagem do cliente ideal. Geralmente a construção das personas se dá com dados já existentes dentro de um banco interno que traz comportamento de compra, dados demográficos, renda, desafios e oportunidades. 

Sabemos que não há um só modelo de persona sendo utilizado em todo o mercado, mas iremos partir do que tem sido mais comum na nossa área de atuação, o que se apresenta com mais frequência. A rigidez com que personas são construídas e sua falta de atualização acaba por torná-las de difícil aplicação no dia-a-dia, levando a suposições derivadas de dados às vezes simplistas. 

Existe um consenso na persona?

De maneira geral, estamos trazendo aqui o que faz parte do nosso trabalho e como estamos desenvolvendo soluções e reflexões sobre o tema, portanto, é importante destacar que não há uma maneira única e consensual de construir, entender e aplicar personas no mercado como um todo. Uma vez definido o nosso ponto de partida, percebemos que o principal motivo para a construção de uma persona dentro do design é compreender o cliente e seus desejos para assim criar melhores ofertas de produtos e/ou serviços, adequados à realidade em que aquele grupo está inserido. 

Já quando olhamos para a persona desenvolvida no marketing, nos deparamos com o que é mais próximo do que nós consideramos público-alvo, onde menos profundidade de dados é necessária para posicionar determinadas ações e desenvolver estratégias de venda e difusão. Há também casos onde nos deparamos com perfis de consumo, que em linhas gerais têm informações  mais aprofundadas, mas não necessariamente usadas para representar um grupo ou entender contextos, necessidades, motivações. 

Pensando em uma linha gradativa de profundidade, teríamos o público-alvo, o perfil de consumo e a persona. Para cada um, são necessárias abordagens e pesquisas específicas. Aqui, vamos nos concentrar no que nós entendemos como persona; este emaranhado de informações que comumente são encaixadas numa figura humanizada para aproximar da nossa realidade e assim, aproximar o nosso cliente/consumidor/usuário. 

Segundo Alan Cooper, um dos idealizadores do conceito de Personas no design, elas são arquétipos baseados em padrões de comportamentos, observados durante a fase de pesquisa de um projeto. E, ao aplicar personas, desenvolvemos um entendimento das motivações e objetivos dos usuários em contextos específicos.


É comum encontrar no mercado pessoas chamando de persona, agrupamentos de características e dados de consumo. Na Kyvo, nós chamamos isso de
protopersona. Consiste numa ideia de persona, com agrupamentos e informações empíricas e subjetivas, geralmente criadas em uma sessão de cocriação ou na fase inicial do projeto. É algo que carece de mais imersão e compreensão para de fato, considerarmos que está representando um grupo específico diante de um comportamento que pretendemos traduzir. 

Na verdade, estamos falando de pessoas e comportamentos, no plural mesmo, onde nosso exercício é trabalhar para incluir suas multiplicidades em contextos comuns, na tentativa de reduzir ao máximo o encaixotamento e a padronização. Por exemplo: todas as pessoas de 25-34 anos, clientes do banco X, não têm fatura de cartão de crédito relevante para acessar benefícios. Falar por “todas” parece um pouco homogeneizante e radical, não é mesmo? É aí que queremos propor reflexões a partir das teorias sociais para questionar a forma com que os parâmetros das personas são definidos e, principalmente, como elas são usadas depois de prontas.

Erving Goffman fala em seu livro “A representação do eu na vida cotidiana” como os indivíduos representam papéis no seu dia a dia, como se fossem atores em uma peça de teatro. Na visão dele, a depender do cenário em que estamos e do público a nos observar, somos capazes de atuar em diferentes papéis para alcançar nossos objetivos. 

Não é provavelmente um mero acidente histórico que a palavra “pessoa”, em sua acepção primeira, queira dizer máscara. Mas, antes, o reconhecimento do fato de que todo homem está sempre e em todo lugar […] representando um papel […] É nesses papéis que nos conhecemos uns aos outros; é nesses papéis que nos conhecemos a nós mesmos […] Entramos no mundo como indivíduos, adquirimos um caráter e nos tornamos pessoas. (PARK, R.E, 1950, p.250 apud GOFFMAN, E., 2014, p.32)

Quando nos aprofundamos nesse estudo, entendemos que cada indivíduo, ao agir, está na verdade atuando, no sentido de adaptar suas ações ao contexto e expectativas em que está inserido. A pessoa, então, usa o que ele chama de uma “máscara” para representar cada ação, o que torna impossível simplificarmos um grande grupo de indivíduos como algo estático, sem possibilidade de mudanças ou ações divergentes do esperado. Em se tratando de pesquisas que olham para comportamentos, devemos identificar qual máscara ou papel estamos olhando e não necessariamente quem é o indivíduo, mas sim o porquê da escolha dessa máscara, para essa atuação, por essa pessoa, pois “acontece frequentemente que a representação sirva principalmente para expressar as características da tarefa que é representada e não as do ator” (GOFFMAN, 2014, p.90). 

Dessa maneira, nem sempre é eficiente olhar para quem aquela pessoa é no âmbito pessoal, íntimo; o que importa para a construção de uma representação de um grupo é entender os contextos onde ela está inserida e a forma que ela age diante de determinado produto ou serviço. Usando as palavras de Goffman, quais máscaras são usadas naquele palco específico, compreendendo que palco é todo o entorno que molda a tomada de decisão. Por exemplo, não podemos afirmar que todos os jovens de 25 anos agem de determinada forma, mas podemos entender os modos de atuação em determinados palcos, ou seja, situações.

Sobre compreender individual e coletivamente

Percebemos que as variáveis usadas para formar os grupos das “personas” muitas vezes têm a intenção de compreender a forma que alguém ou determinado grupo age. Porém, há um grau de complexidade nesse desvendar da ação humana que não é possível de encaixar em grupos com dados demográficos e comportamentos de compra. Sem dúvida esses dados podem informar muito sim, porém, para outras perguntas. Para definir um comportamento, o quebra-cabeça é muito mais multifacetado. Entendemos que precisávamos olhar para o que Max Weber, sociólogo clássico, chamou de “Ação Social”. Weber entende que parte do indivíduo (e aqui no nosso contexto, usuário), é resultado de um conjunto de vontades, desejo, razão (avaliação de fins e meios), motivações (aquilo que nos move, sem necessariamente envolver a racionalidade) e tradições que a compõem. É nela que está concentrada a expressão da sociedade através do indivíduo, do coletivo através do particular. Somos todos partes de grupos e expressamos diversas características, valores, visões e motivações ao viver e agir em sociedade. A tentativa de compreender a ação social significa levar em consideração esse conjunto, expresso no contexto em que esse indivíduo se encontra. É na conceituação da “ação social” que entendemos as personas desenvolvidas pelo cliente como verdadeiros “tipos ideais”, também definidos por M.Weber. Em linhas gerais e simplistas, os tipos ideais são uma espécie de recurso que o pesquisador utiliza para a apreensão da realidade, uma forma de criar um modelo homogêneo, quase plástico, ou seja, ideal, para que se parta de um ponto por onde verdadeiramente começar a apreender e compreender a realidade.

É importante observar que é comum no mercado a prática de criar personas apenas a partir de dados demográficos, de renda e transacionais, gerando personas datadas e de difícil aplicação justamente por não refletirem a realidade de um grupo. Voltando um pouco para Goffman (2014), possuir as características de um grupo não necessariamente significa que você faz parte dele, uma vez que é preciso sustentar tais características e manter os padrões de conduta esperados por cada uma dessas características que recebe e que estão diretamente ligadas a uma construção cultural. Por exemplo: mulher, 27 anos, renda individual de R$5k, morando com amigos –  apenas esses dados não significam muita coisa se ela não atender às expectativas de padrões de conduta e aparência dos grupos em que está inserida e deseja performar. Dessa forma, é fundamental entender o contexto, logo, a cultura. 

Dentro da antropologia não há um consenso sobre o conceito de cultura, muito embora seja uma das principais discussões. É preciso, então, num debate como esse, definir de qual visão de cultura estamos partindo. Clifford Geertz, antropólogo americano considerado o proponente e grande defensor do interpretativismo, entende a cultura como um sistema simbólico onde nós, pesquisadores, precisamos olhar para o outro que é diferente de nós e aproximá-lo em suas diferenças através do interpretativismo, esse movimento de interpretar e traduzir aquilo distante para o que é próximo de nós. “O homem é um animal amarrado a teias de significado que ele mesmo teceu, assumo cultura como sendo essas teias e sua análise, uma cultura interpretativa, em busca do significado” (GEERTZ, 1989, p.4, grifos nossos). 

O ser humano é ele próprio produtor e produto dessa cultura que ele está inserido, cria e modifica. Entendemos que o contexto que falamos em outros momentos é uma fotografia da cultura, oferecendo esse panorama para que alguém aja, pense, exista. Trazendo Goffman novamente, o contexto seria o palco onde as pessoas representam seus papéis. 

E qual a identidade da persona? Ela tem identidade?

Stuart Hall explora em seu livro “A identidade cultural na pós-modernidade” as questões relacionadas à “crise de identidade” do indivíduo pós-moderno. Se durante a modernidade a identidade era algo bem definido, nas quais os indivíduos se encaixavam socialmente, hoje em dia uma “mudança estrutural está fragmentando e deslocando as identidades culturais de classe, de sexualidade, de etnia, de raça e de nacionalidade” (Hall, 1992, p.2). Entre os diversos fatores dessas mudanças está a globalização que comprimiu as barreiras de espaço e tempo existentes no mundo. O autor fala sobre as diferenças entre três tipos de sujeito ao longo da História, a partir das relações entre ele mesmo individualmente (pessoa) e a sociedade (grupo) como um todo, até chegar no que ele chama de indivíduo pós-moderno. Aqui, “o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente”.

Portanto, se estamos dispostos a entender comportamentos e hábitos das pessoas, não podemos mais nos prender apenas em dados demográficos como idade, sexo, gênero, etnia, raça entre outros. É como se as personas aplicadas no mercado estivessem se referindo ao indivíduo moderno, que na verdade pertence a um contexto anterior ao atual, onde classificações como demográficas ditam comportamentos e modos de viver, mas “as transformações associadas à modernidade libertaram o indivíduo de seus apoios estáveis nas tradições e nas estruturas” (p.18). Assim, precisamos pensar em uma persona que retrata o indivíduo pós-moderno e por isso nos concentramos em decodificar a ação social deste indivíduo,  compreender como eles significam um serviço/produto e o momento/lugar/contexto em que estão usando determinado serviço/produto.

Personas não visam estabelecer um usuário “médio”, mas sim para expressar comportamentos dentro de intervalos identificados numa mesma variável. Diferentes personas representam diferentes padrões de comportamento correlacionados (Alan Cooper). Portanto o primeiro passo para desenhar uma persona é deixar claro qual é o viés, recorte e/ou ação que estamos olhando e segmentando os grupos. Cada persona só existe em função de algo e cada olhar pode gerar outros tipos de agrupamentos

A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com as quais poderíamos nos identificar a cada uma delas – ao menos temporariamente. (HALL, Stuart, 1992, p.9)

Dificilmente uma empresa terá um único tipo de persona; geralmente ela vai mudar de acordo com o setor da empresa ou tipo de produto/serviço, pois estamos falando sobre esse “modo de agir e significar as coisas”. Já o público-alvo nos auxilia a encontrar estas pessoas dentro de um grupo maior de indivíduos, geralmente através de dados demográficos. Delimitar um público-alvo pode ser, então, um passo anterior à criação de uma persona que busca realmente a compreensão das ações daquele grupo de indivíduos. A partir do público alvo, dados da base do cliente, ou informações inferidas pelos colaboradores da empresa do cliente, é possível criarmos as protopersonas que servirão de base para o início do projeto. É importante estarmos abertos às mudanças que podem e muito provavelmente irão ocorrer durante o projeto e até mesmo após o projeto, pois estamos falando de indivíduos que cada dia se entendem, transformam e performam de formas diferentes.

Acreditamos que as personas então, nunca estão terminadas. Se pensarmos em “versões”, diríamos que elas nunca chegarão a tão sonhada versão final, estando eternamente na versão beta, precisando de testes e atualizações constantes. Devemos usá-las e aplicá-las até quando continuem a representar os grupos definidos e validados e; à medida que seu uso vai se tornando mais complicado e com mais ressalvas, é necessário dar um passo atrás, observar novamente todas as variáveis que constituíram aquelas personas e retornar ao ciclo – que consideramos fascinante – de pesquisa, recorte e entendimento de comportamentos e contextos; sempre considerando a complexidade da ação humana e da cultura como pontos centrais na construção dessa representação que é uma persona.

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*Guilherme Hobi tem formação em Design de Produto com especialização em Design de Serviço. Apaixonado pelo processo de design e ecossistemas, alinhado com um mindset sustentável, Guilherme tem atuado como pesquisador e service designer em projetos de consultoria. Também compõe ativamente a liderança de iniciativas locais de fomento ao ecossistema de inovação, por meio do design (Global Service Jam e World Design Organization).
*Paula Neves é uma antropóloga que já foi florista. Formada em Ciências Sociais, Paula é mestre em Antropologia pela UFPE e pós-graduanda em Design de Serviços pela Universidade Positivo. Apaixonada por pesquisa, Paula possui diversos cursos em Design e UX Research e atualmente compõe o time de pesquisa na Kyvo. Já empreendeu em serviços de tradução e é mãe de João e Celina.