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Mulheres na liderança. Change as a mindset – Por Clara Bidorini

Por Clara Bidorini*

No início de março, o Google divulgou em seu blog uma breve análise sobre suas avaliações em termos de equidade de salários entre homens e mulheres dentro da corporação. Segundo a análise, esse estudo seria o primeiro passo para evitar discrepâncias salariais e garantir equidade de remuneração, e como exemplo de transparência, o próprio Google cita o caso de uma categoria de engenheiros de software, em que os homens recebiam menos do que as mulheres.

Contudo, para quem não acompanhou o acontecimento, a iniciativa aconteceu seis meses após um grupo de funcionárias e ex-funcionárias da Google terem movido um processo na Justiça da Califórnia contra a corporação, denunciando a desigualdade na remuneração entre gêneros. E ainda que o blog mostre sinais de mudança na política de remuneração, o evento chamou a atenção para mais um detalhe: apenas 30% dos funcionários no Google são mulheres. Segue então uma pergunta que vale a pena ser colocada, ainda em 2019, hoje e todos os dias a seguir ao dia internacional da mulher, no Brasil como fora: por que é importante falarmos de igualdade salarial e trabalho justo?

Trabalho, atividade especializada, profissão: independentemente do recorte de mercado e de tamanho, a visão contemporânea de empreendimento consolida a existência de uma empresa na presença de dois elementos: o core, no qual reside sua estratégia, sua raison d’être, seus valores, e por um conjunto de atividades mais perimetrais, operacionais, que entregam sua estratégia na ponta. Ainda que hoje, teorias de complexidade, visão sistêmica e novas formas de conceber empreendimentos incluam visões holocráticas e rizomáticas, que colocam em cheque o dualismo “estratégia/operação”, devido à falta de acesso ou negação à instrução, historicamente a mulher não tem tido acesso ao core, apenas às operações perimetrais.

Restringir o acesso à educação feminina não resultou apenas na falta de instrução sobre disciplinas necessárias para deixar de trabalhar na operação, mas, sobretudo, no impedimento de poder exercitar pensamento crítico em campos científicos e técnicos e desenvolver a prática de liderança e de empresária. A falta de espaço e oportunidade para dirigir um empreendimento, participar de decisões estratégicas e, consequentemente, projetar uma imagem de realização profissional tem como consequências, ainda muito atual, falta de confiança e empoderamento. Não à toa, são pouquíssimas as referências de sucesso da liderança feminina em relação à abundância de homens corriqueiramente inseridos no mercado em papéis de liderança.

Se olharmos pelo aspecto mais operacional, essa mesma incredulidade sobre empoderamento feminino deixa a mulher estagnada em um patamar operacional, sendo ela incapaz de melhorar sua posição e evoluir podendo atuar com maiores responsabilidades. Dessa forma, a repetição de tarefa tem sido, infelizmente muitas vezes, a única expressão profissional da mulher.

O meu trabalho como profissional mulher começou recentemente, em meados de 2014, quando me tornei líder de inovação, alocada numa grande empresa de seguros do Brasil. Foi nesse período de coordenação da frente de Governança Corporativa de Inovação da Holding do grupo que comecei a me perceber nesse meu novo espaço e a notar que crescia o interesse de outras mulheres na minha atuação, com frequentes perguntas do tipo “como você faz isso?”. As referências cotidianas, como acontece na maioria das empresas, eram apenas masculinas ou masculinizadas, machistas e em alguns casos misóginas. Pouquíssimas diretoras (na época apenas duas) e muitíssimas reuniões com gerentes, superintendentes e até diretores homem “interpretando” com suas palavras a fala das poucas mulheres presentes nos Comitês com o board (isso vai do mansplaining até a apropriação do projeto – bropriating, dos resultados ou a reprovação pública de uma ideia).

Com essa percepção, mais tarde, em 2016, na área de inovação de uma empresa de energia, me deparei com um outro cenário: mais diretoras, uma mulher como presidente, maior abertura nos Comitês (apesar de novamente ter acontecido de ser a única mulher presente em alguns encontros), uma área maior para “elas” no departamento comercial, atendimento, RH, comunicação, mas ainda não no core, muito menos na tecnologia. Esse foi para mim o ano da mudança, o ano em que comecei a refletir sobre modelos femininos de liderança. Foi quando entendi que precisaria me empoderar e empoderar minhas amigas, colegas e outras mulheres por meio desta construção de representatividade e autoconhecimento.

Inspirar mulheres a se tornarem líderes de suas vidas é um dos motivos que me faz subir ao palco. Defender esse lugar de fala para a criação de abundância e visão sistêmica tem sido o gatilho para ajudar meninas adolescentes a se sentirem representadas na sua construção de futuro. Representatividade (líderes inspiracionais, referências para olhar, admirar, se rever) é apenas o primeiro passo.

O segundo passo compreende conscientização e autoconhecimento. Não podemos esquecer a necessidade de acolhimento e a prática da autoconfiança em uma sociedade onde as mulheres raramente acessaram esse exercício. Ou seja é preciso ter e praticar um olhar novo, de mudança, para que as mulheres possam trilhar seu caminho profissional, desenvolver seu estilo de liderança e seu lugar de fala. Por esta razão surgiu a ideia do Change as a Mindset, um curso de mulheres para mulheres com objetivo de utilizar a mudança como chave de leitura para nos tornarmos mulheres (não apenas profissionais) completas.

O curso foi inicialmente pensado para mulheres desempregadas que buscam recolocação, que deixaram o mercado de trabalho pela obrigação social para serem mães e pela obrigação corporativista de fazer uma escolha entre carreira e família. Mulheres que hoje, sem filhos para cuidar, e às vezes digitalmente excluídas, estão engrossando as estatísticas de desemprego no Brasil. Uma parcela do mercado que é esquecida, ignorada, com sua história não contada.

Entre as professoras do curso, encontram-se grande colegas e profissionais que marcaram minha trajetória pessoal e profissional no Brasil: Alexandra Favero (referência em Identidade), Marcia Asano (Data Strategy and Open Innovation), Carol Zatorre (Antropologia), Patricia Byington (Sustentabilidade e Impacto Social), Estela Rocha (Liderança), Luciana Hashiba (Pensamento Maker), Bella Neves (Gestão de Mudança em Momentos Turbulentos) e Carla Link (Cidades do Futuro).

Com elas, participo também do Grupo de Mulheres que atuam em Design e Inovação, para organizar ações concretas que estimulem consequências reais no nosso meio de trabalho. Ao todo, em seis meses de ativação, organizamos três encontros presenciais, seis grupos de trabalho auto geridos e estimulamos a troca de ideias sobre temas “tabu para mulheres”: dinheiro, negociação, carreira, comparação com profissionais homens, assédio e machismo nas empresas. Somos mais de 250 mulheres e todas estão inseridas no mercado de trabalho ou em mudança de carreira dentro das áreas de inovação e design. A ideia foi da Carla Link e vem movimentando projetos muito interessantes, entre os quais a organização do Global Service Design Jam, que acontecerá no Instituto Europeo de Design, onde ensino nas Pós de Design Estratégico e Service Design.

O espírito de participar dessas ações nasce não só por demandar igualdade de condições salariais, mas também para construirmos trabalhos mais justos, empoderarmos mulheres e mulheres queer e trans, termos discussões sobre livre sexualidade, consciência de classe e pertencimento social, sempre usando o conceito de mudança como alicerce para repensar o nosso papel de mulheres na sociedade.

Em breve, esperamos que o levantamento do Google mostre não apenas equidade salarial, mas equidade de gênero na formação de seus times. Ainda assim segue a reflexão: se não tivermos sensibilidade e exercício para falarmos desses temas, como iremos parametrizar o algoritmo que analisa a equidade salariais, de gênero e de classe, no nosso dia a dia?

*Clara Bidorini é head de corporate venture na Kyvo Design-Driven Innovation, cofounder do Programa_Namoa, participa da Rede de Mulheres atuando em Design e Inovação.

**Artigo publicado no Proxxima.