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Discursos políticos invisíveis – por Márcio Leite

Há cerca de dez anos, ou um pouco mais, vivenciei um episódio num ambiente de estúdio de criação que ilustra muito bem como o trabalho do designer e suas tomadas de decisões, podem resultar em discursos de inclusão, impacto e transformação social.

 

Naquela época, meu time e eu havíamos sido briefados pra fazer um dos anúncios da empresa onde trabalhávamos. A peça gráfica seria veiculada em uma importante revista do mercado publicitário de São Paulo (focada em profissionais e agências de comunicação do trade), impactando toda cadeia do mercado.

É preciso dizer que não havia, até aquele momento, na grande maioria das companhias, uma preocupação com a uma construção de imagem de marca ligada a discursos sociais ou ações que indicassem uma consciência do impacto social das empresas. Haviam claro, algumas marcas no mercado que começavam a abraçar causas sociais, mas ainda era um momento embrionário e as iniciativas se confundiam ainda com o Marketing Social ou Marketing de Causas (que foca em ações como doações, campanhas pró-sangue ou conscientização de saúde e prevenção a doenças).

Naquela empresa, da mesma forma que no restante do mercado, não havia um discurso e um posicionamento atrelado à sua marca, que fosse pervasivo em seus materiais de comunicação, indicando um senso de inclusão e diversidade.

O fato é que, naquela época, não se podia falar “dessas coisas” ou “levantar bandeiras”. Era esperado uma posição “neutra”, “chapa branca”, “imparcial”, afim de evitar desgastes “desnecessários” com clientes, parceiros e lideranças da empresa.

A empresa possuía uma marca sólida, com um grid gráfico e parâmetros replicáveis, reconhecíveis no mercado. E essa assinatura gráfica bastava para passar sua credibilidade enquanto negócio.

Longe de ser uma identidade colorida, amigável, humanizada, com imagens de pessoas felizes e diversas, naquela época não havia, naquela empresa, um consenso sobre posicionamento de marca – ou o hoje tão celebrado “propósito” de marca, que as empresas tanto buscam construir.

Então, para aquele pedido em específico, fizemos 03 variações de anúncio: um com a imagem de uma família ‘neutra’, uma versão com uma foto de ‘casal margarina com um Golden Retriever’ e uma terceira versão, com uma modelo negra, jovem, bem descolada.

 

Me espantou na ocasião, quando uma pessoa da liderança me disse de forma firme: “a gente não tem que fazer ‘isso’. Não precisa, né?!” e apontou para o anúncio com a imagem da menina negra.

 

É difícil dizer se, naquele momento, esta atitude se deu pela miopia causada por viver a vida toda na bolha da classe média; se o fez intencionalmente, pela perversidade de oprimir; ou se por uma percepção estrutural errônea, de que realmente o mundo, “todo mundo”, é majoritariamente branco.

 

Aquele anúncio não passou adiante e a liderança aprovadora da época não deve sequer ter chegado a ver o lay-out com a modelo negra. Mas, depois daquele episódio, os designers silenciosamente continuaram insistindo, sistematicamente, nos layouts inclusivos. Sempre propondo uma seleção criteriosa e consciente das imagens usadas nas campanhas, nos PPTs corporativos e onde mais pudessem colocar sua mão criativa. Isso gerava debates menores, pequenas discussões e ponderações pontuais que, pouco a pouco, foram sendo absorvidas e normatizadas pelos pares.

A partir daí, o time planejou estratégias e novas ações corporativas dando visibilidade às causas inclusivas; criou documentos que traziam luz para os temas sociais sensíveis; trouxe mais aliados, de outros departamentos, para esses projetos e algum tempo depois, a mesma liderança que no passado barrou aquela arte de anúncio, abraçou as iniciativas, patrocinando importantes projetos e frentes de diversidade, inclusão e transformação social dentro da empresa.

É claro que o movimento das marcas globais surtiram efeito em cascata, influenciando especialmente as lideranças brasileiras, mais sensíveis aos movimentos internacionais.

Lideradas por diversas outras empresas, especialmente as big techs, essas ações e demonstrações de apoio a causas sociais e políticas, influenciaram muito o suporte ao desenvolvimento desses projetos de transformação interna, naquela empresa onde trabalhávamos.

Mas sem dúvidas, sem a sistemática insistência dos designers, na construção dessas novas visões de realidades e sem o apoio de outras lideranças que se juntaram a esse processo, essa percepção não viria a tona na forma de projetos e ações reais tão cedo.

 

 

 

Depois desse processo interno, por conseqüência, o nosso ambiente criativo também se transformou. Os times criativos deixaram de lado discussões como, se o modelo da foto era “muito gay”, ou se o fundo era “muito rosa e feminino” (no passado alguns anúncios e campanhas foram retornados por serem em tons de pink) ou se haviam “negros demais” nos slides da apresentação dos clientes; passando a outras preocupações como, se a mensagem estava correta, ou se os consumidores perceberiam a preocupação ética da empresa em relação a determinados temas sociais.


 

 

Design é uma ferramenta política que constrói discursos e como designers, é fundamental que enxerguemos esse poderosos espaço de privilégio que ocupamos e a força do impacto das nossas escolhas, na realização do nosso trabalho diário.

 
 

Designers tem o poder de transformar o sistema de dentro para fora. E como designers, devemos fazer uso dos nossos espaços para sermos agentes de transformação, geradores de impacto positivo para nossas audiências e fazer da nossa produção um meio de conscientização para temas sensíveis.

 
 

Ao impactar sistemicamente a cadeia de produção de recursos criativos, designers reescrevem narrativas e transformam visões acerca do mundo, gerando impacto social.

 
 

Em 2019, no evento South by Southwest, em Austin, Texas, a plenária ‘The Future of Gender Identities in Art and Media’ discutiu abertamente questões sistêmicas que geram imagens estereotipadas e míopes de indivíduos marginalizados na mídia e o que a indústria criativa estaria fazendo para inspirar e apoiar artistas e perspectivas LGBTQ +.

Dados colhidos mundialmente, através do uso recorrente de uma plataforma de locação de imagens, possibilitaram que a empresa de conteúdo gerasse novas representações da realidade, propondo novos modelos e discursos que refletem as transformações que estão ocorrendo na sociedade. 

 

Repetidas buscas sobre “homem+cozinhando”, “homem+limpando a casa”, “homem+ trocando fraldas”, realizado por designers e diretores de arte numa plataforma global de venda de imagens, geraram dados novos, verdadeiras ‘clouds de palavras’, que apontaram mudanças nos valores sociais. Esses dados ajudaram então a integrar essas mudanças em sua estrutura de produção, propondo novas visões de futuro, por meio da criação de novos conteúdos e o envolvimento direto da comunidade criativa, provocando novas mudanças sociais.

Essas novas construções visuais serão por sua vez, utilizadas em outras campanhas por outros profissionais, sensibilizando de forma interdependente toda uma rede de profissionais, ao oferecer mais imagens casuais, corriqueiras, propondo ‘novos normais’, tais como novas composições familiares, cenas com casais homoafetivos idosos em momentos felizes, casais homoafetivos de mulheres em férias, homens negros em cargos de chefia, mulheres negras em posições de liderança, além de apresentar de forma positiva uma diversidade de corpos e características físicas marcantes em seu inventário de imagens.

Essas demandas, geradas por designers, impactam e alteram todo o sistema de produção criativa, influenciando fotógrafos, produtores, ilustradores, redatores, agências de modelos, agências e estúdios de criação e o próprio mercado, num circulo virtuoso, que se retroalimenta dessas novas visões.

Sem essa sensibilidade e trabalho crítico recorrente do designer, para quebrar a norma; sem essas janelas abertas para outras realidades existentes; sem essa visão humana e inclusiva; sem novas construções simbólicas e discursos mais diversos e mais democráticos, nossas comunicações permanecerão pálidas, monocromáticas, em cenários de apartamentos padrão de subúrbios classe média, com réplicas baratas de móveis italianos assinados, eletrodomésticos prateados e panelas francesas ao fundo. Por que esse é o mundo ideal projetado por alguns criativos, com uma visão miope do mundo, quando projeta apenas para determinados grupos sociais, mais limitados.

Mas essa não deve ser a norma.
Não para todes.

Márcio Fábio Leite é mestre em Design pela UAL-LCC / London College of Communication. Autor do livro Geração Pixelada, um método de pesquisa em design sobre subcultura jovem, redes sociais e indústria de consumo. É especialista na construção de discursos e estratégias para marcas, produtos e serviços a partir das abordagens e processos de design colaborativo. Trabalhou ao longo da sua carreira para importantes empresas como AMBEV, Philip Morris, O Boticário, Marisol, Ferrero, nos canais Globosat e One Globo, onde implementou e liderou um innovation lab, desenvolvendo projetos e operações de inovação sistêmica com áreas internas e com parceiros comerciais. É palestrante e professor, atuando hoje como consultor associado junto a empresas de design-driven innovation.