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Olhar antropológico: como as ciências sociais têm sido fundamentais no desenvolvimento do ecossistema de inovação no Brasil e no mundo

Não é de hoje que mulheres enfrentam inúmeras barreiras em suas trajetórias profissionais.

Já sentimos na pele a falta de espaço e oportunidades de ascensão profissional em diversas áreas de atuação e, mais recentemente, lidamos com esse desequilíbrio no mercado de tecnologia com 90% da participação masculina. Em meio a segunda década do século 21 nos deparamos com estatísticas semelhantes no mercado de inovação, quando temos levantamentos recentes que apontam que o setor esbarra na não inclusão de mulheres e na falta de diversidade dentro das startups, como reflexo do que já acontece há décadas nas grandes corporações.

Pelo recorte da antropologia, no entanto, até mesmo na academia já nos deparamos com a falta de oferta e disponibilidade de empregos para pesquisadoras (sendo a maioria de mulheres na antropologia). É uma realidade também no meio acadêmico a dificuldade que antropólogas encontram para performar e desenvolver suas habilidades, projetos, pesquisas, articulações, etc. Senti isso na pele por alguns anos e, lá nos idos dos anos 2010 migrei para o mercado corporativo quando vi oportunidades de trabalhar com pesquisa para o mercado corporativo por meio do design de serviço.

Mulheres na antropologia

Historicamente foram as ciências sociais que impulsionaram o ingresso das mulheres na área de humanas, ainda na década de 30, motivado pelas primeiras manifestações do movimento feminista chegando ao Brasil. Mais especificamente na antropologia, o número de mulheres é maior por motivos culturais, como afirmou a Miriam Grossi, antropóloga e representante das ciências humanas na Capes, em artigo científico na Revista Com Ciência (2003). Ela destaca que os métodos da antropologia abordam a subjetividade, sentimentos, relações entre indivíduos e seus pares e com o meio em que vivem; tratam de métodos de observação, de alteridade e de escuta – valores delegados ao feminino pela cultura ocidental.  “Um antropólogo só fará uma boa antropologia se ele for capaz de elaborar, de registrar seus sentimentos. É um treinamento de reflexibilidade, que é um valor atribuído ao feminino”, explica.

É por isso então que é costume dizer que esse olhar sistêmico que a antropologia e a pesquisa etnográfica exigem, é muito mais atribuído e tem mais afinidade ao feminino. E são essas características que potencializam a inovação, uma vez que em geral, culturalmente, mulheres são mais aptas a acolher diferentes pontos de vista, gerar e amplificar maior senso coletivo, etc. Desempenhamos melhor, por meio da construção social dos papéis de gênero, as atribuições de observação, escuta, identificação e apelo maior ao emocional que o racional; subjetividades inerentes à prática da pesquisa.

Tenho sido intensamente procurada por muitos pesquisadores, em sua maioria antropólogas, que chegam com muito interesse em explorar o campo da pesquisa no mercado de inovação.  Consultorias, estúdios e empresas de inovação têm mostrado uma crescente presença de mulheres em seus times de pesquisa. Tem a ver com o próprio método que é de escuta. Como personalidade marcante no mundo acadêmico – embora os principais autores e referências sejam homens, tem muita mulher na produção acadêmica da antropologia, cerca de 70% era de mulheres formadas em antropologia em 2002, segundo dados da UfsCar.

A pesquisa no meio corporativo

Há mais de uma década que temos testemunhado o aumento da participação de antropólogos no mercado e empresas de inovação. É o que já mostrava em 2015 um artigo da EPIC (The Ethnographic Praxis in Industry) sobre o reconhecimento da aplicação da antropologia nos negócios a partir da publicação de artigos na imprensa popular tais como:  “Anthropology, Inc.” (The Atlantic), “Bill Gates as Anthropologist” (New York Times 2005, comentando um artigo na Fortune Small Business, “Pigmy Hunters”) ou “An Anthropologist Walks into a Bar” (Harvard Business Review). Houve, portanto, um consenso geral mercadológico de que a antropologia não estava mais confinada ao estudo dos povos indígenas, quilombolas e outros. A disciplina passou a ser vista como uma ferramenta para o avanço das empresas comerciais. “O que antes era uma especialização acadêmica guiada pelas hierarquias patrimoniais do mundo acadêmico está agora no mercado e na praça pública, com vários profissionais de pesquisa se identificando como antropólogos ou etnógrafos”. O artigo discorre ainda sobre a participação e qualidade da comunidade de antropólogos atuando no mercado corporativo.

Já é notável que a presença de antropólogos atuando no mercado de inovação vem crescendo. A Sensorama, fundada e dirigida por Luisa Nogueira, é um exemplo de liderança e composição de time com maioria de mulheres e que amplifica a diversidade com profissionais de diferentes identidades de gênero. A Mutato, agência de publicidade, no meio do ano passado, incubou a consultoria Indique uma preta – grupo criado em 2016 pelas fundadoras Amanda Abreu, Daniele Mattos e Verônica Dudiman, para ampliar o acesso de mulheres negras ao mercado de trabalho. É também um forte exemplo de estratégia de inovação com um braço de consultoria que opera com diversidade, também com recorte de raça; bem como a própria Kyvo que atualmente possui maioria de mulheres no time, desempenhando funções protagonistas em projetos, coordenação, estratégias de negócio e comunicação.

O mercado corporativo brasileiro é um terreno fértil demais para a antropologia, mais especificamente para a pesquisa etnográfica. Grandes corporações também despontaram em contratações e aquisições de antropólogas em seus times internos, tais como a Porto Seguro, Ambev, Banco Carrefour, Fiat, etc. Efeito causado pela inclusão de profissionais da etnografia e antropólogos do consumo em meados dos anos 2000, quando muitas empresas reconheceram as análises de tendências e comportamentos do consumidor de forma mais ampla e frequente.

Liderança e comunidade global

Globalmente a comunidade de antropólogos conta com o apoio da EPIC People, organização sem fins lucrativos dirigida por voluntários e apoiada por membros e patrocinadores – que promove a prática da etnografia para criar e gerar valor na indústria, organizações e comunidades. Em outubro de 2020 eu fui convidada a compor o board estratégico da EPIC, como representante da comunidade brasileira e latinoamericana de antropologia, com o intuito de engajar profissionais, conectar e desenvolver conhecimento e práticas da antropologia no mercado corporativo.

Essa conquista não deixa de ser um reforço de que mulheres estão avançando e ganhando espaço nas lideranças estratégicas de entidades e organizações globais alinhadas à inovação. Ser nomeada representante da comunidade de antropologia na América Latina é o passe valioso para desempenhar essa função sem me desviar do caminho pela diversidade e pelo rompimento de paradigmas e estereótipos dos campos acadêmico e mercadológico.

Há pouco mais de um mês estou coordenando de forma colaborativa um grupo multidisciplinar de profissionais que atuam com design, etnografia, pesquisa, comunicação, ciência e análise de dados, inovação, tecnologia, sociologia, etc. para projetar o trabalho de articular esse ecossistema com protagonismo e diversidade. As ciências sociais são o maior legado do conhecimento antropológico e é a partir delas que conseguiremos enfim desenhar o tão novo mundo que há tempos estamos desejando viver e cohabitar.


Carol Zatorre é antropóloga, com experiência em projetos de pesquisa em interface com equipes de design. Professora de Pesquisa em Design na Pós-Graduação de Design Centrado no Usuário na Universidade Positivo e desde 2015 atua como Head de Pesquisa na Kyvo Design-Driven Innovation onde é co-fundadora. Desde 2020 é membro e representante do corpo diretivo da EPIC People – uma comunidade global de profissionais que fazem etnografia para impactar negócios e organizações com o intuito de engajar a comunidade brasileira e latinoamericana de antropólogos.